Europa Assombrada

A Europa adormeceu no domingo com a sensação de estar numa casa assombrada. Após uma eleição onde a grande vitoriosa foi a abstenção, o velho continente viu acordados velhos fantasmas que, na realidade, após quase 70 anos, nunca deixaram de permanecer entre nós.

Olhando objectivamente para os resultados, conseguimos entender que o projecto europeu e a União saiu destas eleições com um gigante cartão amarelo, a roçar o vermelho, dado por um povo que não reconhece nas instituições europeias mais do que um bloco de elites despesistas, que pouco têm conseguido numa suposta busca por um crescimento da Europa face ao cenário global. A par da abstenção, que atingiu níveis muito elevados por toda a União, encontramo-nos perante um resultado ímpar e que tem tido todo o tipo de comentários e análises, com a escalada das extremas esquerda e direita, com posições xenófobas, anti-semitas, radicais e anti-europeias.

Não poderíamos esperar outro cenário, honestamente. Os grupos extremistas sempre tiveram a capacidade de mobilizar de forma intensa os seus apoiantes, nomeadamente jovens, e, face a uma Europa marcada por desemprego e crise, não é muito difícil de levar mais pessoas a seguirem ideais, que, teoricamente, até vão ao encontro do que os apoiantes vêem como ameaças à sua própria estabilidade social. Foi isso que vimos nos últimos meses por toda a Europa e que culminou com uma vitória em eleições destes grupos.

Contudo, os fantasmas que se levantaram, nomeadamente com a subida da extrema-direita na Alemanha e, principalmente, em França, vêm mostrar que a Europa continua a ser uma frágil boneca de cristal presa ao passado, que não conseguiu ainda passar à frente de uma realidade do início do século XX e que, graças a isso, nas últimas três, ou quatro décadas, acabou por tomar decisões políticas que podem comprometer, hoje, o projecto de união. A indignação do povo perante as instituições duma Europa que, ao olhar de muitos, castiga os próprios membros com políticas destrutivas, protege os países mais ricos e vive baseada nas elites governamentais (algo que sempre aconteceu na Europa), foi trazida às eleições pelo nível de abstenção e pelos próprios resultados dos partidos que, em cada país, tradicionalmente, vencem as suas eleições correntes.

Qual o problema desta Europa? São vários, na realidade, e todos eles bastante complexos. O projecto europeu está caduco na sua forma e desligado do seu próprio povo, o que levou a que diversos analistas preconizassem o fim da União e do Euro logo após o conhecimento dos resultados. De certa forma, poderão não estar assim tão errados, pois este sistema que foi criado na década de 50 e que chamamos de União Europeia já não está ajustado à realidade e, seguramente, terá de desaparecer para poder dar voz a uma Europa mais unida. O ideal de uma Europa federal é, cada dia que passa, menos provável e, na realidade, seria a pior solução, fruto de uma necessidade de resgatar velhos orgulhos imperais europeus e nada ajustados à maior riqueza que o velho continente tem – a multiculturalidade das nações e a diversidade de recursos. Algo que deveria ter sido promovido desde o início e não destruído, como em muitos países o foi (Portugal é um exemplo disso).

Por um lado, a Europa tem em si algo que a diferencia do resto do mundo, sistemas de protecção social, que, embora não sejam perfeitos, fazem do continente um dos melhores no mundo para se viver e, claro, atraem até si muita gente. Por outro, estes mesmos sistemas são em si um problema, pois, para além dos seus elevados custos, podem também ser a razão para fortes dependências do próprio sistema, já para não falar que, na sua maior parte, geridos individualmente pelos membros e não duma forma global, em termos europeus. Neste quadro existe, ainda, outra questão que se prende com a ameaça, sempre presente, que ainda é sentida pelos povos europeus em relação ao fascismo e ao comunismo. Ainda se espera a Terceira Guerra Mundial e, sempre que os partidos de direita ganham, poder voltam as brisas e os ventos fascistas. Exemplo disso é a quantidade de insultos que Angela Merkel recebe, apelidando-a de Hitler.

O que aconteceu nas eleições europeias, ao contrário do que os partidos gostam de aproveitar, nomeadamente a oposição, não foi um cartão vermelho à maior parte dos governos (óbvio que há casos específicos, nomeadamente o francês), mas, sim, ao próprio sistema político, que, claramente, precisa de evoluir. A democracia (e não é só na Europa), na forma como existe hoje, tornou-se um sistema de elites, que se alternam, trazendo as mesmas soluções bicéfalas para problemas que se vão acumulando.

O voto de Domingo não revela que os povos europeus acreditem que as ditaduras sejam a solução, mas mostra que a democracia precisa de permitir, facilmente, que os cidadãos se aproximem dos sistemas e tenham voz activa. Embora muitos gostem de apontar o dedo ao desinteresse dos cidadãos face à política, é muito importante compreender que a política tem-se vindo a afastar, das mais diversas formas, dos próprios cidadãos que, supostamente, servem. Por isso, surgem as críticas às mordomias, quer dos políticos nacionais, quer dos deputados e comissários europeus, face ao trabalho que é feito. As próprias burocracias e bloqueios que todos encontramos e com as quais contactamos são também fruto duma Europa que tenta, a todo o custo, controlar mercados nacionais e geri-los, através de regras.

A Europa poderia, hoje, ser quase totalmente auto-suficiente em termos de recursos, nos mais diversos níveis, se permitisse a todos os países desenvolverem as suas mais-valias nacionais, criando clusters europeus e terem um acesso privilegiado a todo o mercado da União. Isto permitiria que todos os países se desenvolvessem duma forma global e conseguissem, por via do crescimento sustentado, resolver mais facilmente problemas, como o desemprego e a discrepância de nível de vida entre os estados-membros. Verdadeiramente unida, a Europa poderia fazer face aos EUA, ou à China e não estaria constantemente a alimentá-los economicamente, cavando a sua própria sepultura, aquela que está a viver desde há uns anos. No entanto, o facto é que cada membro inserido na União vive mais isoladamente que nunca, contando de forma pontual com o impulso global das instituições, mas de forma permanente com as burocracias e castrações do sistema.

O grito que o povo europeu lançou no Domingo acordou fantasmas e o pânico dentro das instituições, automaticamente, instalou-se. Cansados de utopias e promessas, os cidadãos sentem todos os dias na pele o fruto de políticas egocêntricas de elites que lembram os velhos impérios que lideraram a Europa no primeiro milénio da Era Cristã. Não significa isto que iremos viver mais um período negro na nossa história, como muitos querem advogar, mas a contestação que o Parlamento Europeu vai viver, durante os próximos anos, poderá ser o suficiente para que as instituições que lideram a suposta Europa unida tenham de rever os seus conceitos e transformar, radicalmente, aquilo que é o projecto europeu. Individualmente, os países também terão de reflectir sobre os resultados, nomeadamente em termos de abstenção, e compreender que urge à classe política uma reaproximação aos povos e às suas reais necessidades. Muitos filmes, nomeadamente de ficção científica, trazem-nos cenários pós-catástrofe, de um governo isolado, numa cidadela protegida, desligada das necessidades das populações empobrecidas e revoltadas, que esperam um herói que venha repor o equilíbrio e a justiça. Não é muito diferente do cenário que estamos a viver hoje na Europa.

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