Escolhes azul ou cinzento?

Não existe bela sem senão. Ter algum à vontade na escrita privou-me do dia de sol e da temperatura amena que vai banhando os transeuntes. Tenho prazos a cumprir para a entrega deste artigo e restam-me duas opções: maldizer a minha sorte ou agradecê-la. Eu, acreditem, não adormeço sem agradecer tudo o que recebo de positivo e já incuti o mesmo hábito nos meus filhos.

Recordo-me de ter sobrevivido com algumas marcas ao atropelamento emocional que uma doença crónica traz. Ou melhor, a vários atropelamentos. No meu caso a teoria comprova que existe uma transformação pós-traumática que, idealmente, culmina  numa busca pelo positivismo assim como numa sede de amizades igualmente positivas. Talvez se trate do instinto de sobrevivência ou de um profundo amor à vida, não obstante todas as suas vicissitudes. Isto não implica, de forma alguma, abandonar um amigo que passa por uma fase menos boa ou mesmo depressiva. Confesso que ofereço alguma resistência a cercar-me de constantes amuos, queixas e vitimizações. Há quem considere a vida uma cruz e tenha um teto, casa e comida, e, no entanto, não se coíba de manter os problemas debaixo de foco de forma a que até o doce vire azedo. Há pessoas que, por sistema e desde que nasceram, vivem revoltadas com ninharias e dificilmente mudarão.

Existem mesmo casos de contágio extremo em que percebemos que, após dez minutos de convívio com a vítima do governo, dos pais, do patrão e do marido, nos encontramos subitamente enrolados no enredo e os nossos próprios problemas tomam proporções catastróficas. Anuímos e discutimos acaloradamente a luta diária para caber numas calças número 34. No seguimento do azedume, enfiámos o pé numa poça e perdemos o combóio… há dias em que mais vale não sair de casa. Já não podemos ouvir a voz do colega do lado, não nos pagam para isso. Temos filhos desarrumados, irreverentes e o cão só faz disparates. O dia devia ter quarenta e oito horas para darmos a volta à nossa existência miserável ou, pensando bem, talvez nem sobrevivessemos a quarenta e oito horas seguidas de tortura.

Em momento algum, após o contágio, respiramos fundo e sentimos o cheiro da relva acabada de cortar pelo suado funcionário da câmara municipal. Nem nos lembramos de que temos filhos irreverentes porque são saudáveis e que o cão nos recebe diariamente em euforia. O colega do lado até já deixou um bombom em cima do teclado, mas continuamos a implicar com a voz dele e esquecemos rapidamente esse episódio agradável.

O pior? Não nos afastamos das pessoas que nos arrastam para esta espiral de negativismo. Se existem vidas realmente difíceis, elas não só não nos assistem como raramente empatizamos com elas. E, quantas vezes em jeito de lição, aquela criança com cancro continua a sorrir e a deixar-se deliciar pelo aconchego de um dia de sol. Quantas vezes aquela mulher que foi vítima de violência doméstica se fortaleceu, se reconstruiu sobre as próprias ruínas e nos fez corar de vergonha por sermos tão pequenos. Talvez essa mulher tenha aprendido a sentir-se grata por cada dia de paz, por cada gesto de amor puro, por ter aprendido a amar-se acima de tudo. Talvez, hoje, ela sorria quando enfia o pé numa poça porque não é um pé molhado que lhe tira um sorriso quando já sentiu dores tão mais avassaldoras.

Precisamos, então, de passar pela pior das experiências para nos tornarmos pessoas mais gratas e positivas? Idealmente – e preferencialmente – não. Este é um processo que podemos iniciar em qualquer momento, assim o desejemos. Mas tantas e tantas vezes esperamos pelos momentos negros para impulsionar revoluções internas. Das piores fases da nossa vida tendem a sair aprendizagens positivas, mas nem sempre é assim e até nisso o livre arbítrio assoma discreto. É nos momentos em que alguém me puxa para baixo que escolho cercar-me dos que me puxam para cima.

E tu, começas a viver já ou deixas para mais tarde?

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