Estava no sofá, sentado, rodeado de almofadas e tapado por uma manta. O seu último amor tinha-se fartado dele, ou tinha encontrado outra pessoa, ele nem sabia bem, e ali estava ele completamente sozinho, dormente e deprimido.
Olhava para a televisão sem ver, não percebia os sons à sua volta, a loiça que a mãe lavava na cozinha, a música que o seu irmão punha a altos berros no quarto. Não entendia. Não pensava e ao mesmo tempo não parava de pensar. “Onde é que eu errei, desta vez?” Pensava em todas as situações em que tinha sido intransigente, tentava alterá-las no passado, esperando um presente diferente. Mordia os lábios e o interior das bochechas com força, arrependido por ter sido uma pessoa difícil nesta ocasião, por ter gritado naquela; arrependido, e sabendo que de nada adiantaria pensar, nada iria mudar, mas ele não conseguia deixar de remoer, e remoer, e remoer.
Nem importava que ele, que o seu amor, lhe tivesse batido. Tinha sido só daquele vez, e ele tinha pedido desculpa. Sabia que ele o amava, que era dele. Porque é que ele não o queria mais?
“Queres um chá, filho?” Olhou para a mãe, olhos de preocupação, alma estilhaçada por ver o filho sofrer.
Teve vontade de chorar e agarrar-se à mãe, ter um colo bom, quente, eterno, que nos ama. Chorar no colo da mãe como quando era pequenino e se aleijava no joelho. Fez um movimento simples de cabeça, um “tanto me faz”, que a mãe entendeu como sim.
Sem saber como, tinha um copo de chá quente e mel nas mãos, enquanto continuava a olhar para um programa qualquer na televisão. Nada interessava agora, só ele. Ele que não mais estava, que não era mais dele. Bebeu um pouco de chá, que lhe queimou a língua e o fez sentir algo, dor, dor física. Continuou a beber, a queimar um pouco a garganta e os lábios, a esconder as lágrimas que se misturavam com o chá e que davam um sabor triste, desolado e salgado à vida. Talvez tivesse adormecido depois. Ou talvez não; talvez fosse outra coisa qualquer parecida a sono, porque desde que ele o tinha deixado sozinho que sentia que não conseguia dormir.
*
Sentiu o beijo do pai na testa, quando chegou do trabalho e se sentou no sofá. O pai trocou algumas palavras com mãe que ele não ouviu, não estava concentrado, não queria saber. Ele não disse nada, e o pai também não. Ele continuou quentinho debaixo da manta. “E agora?” perguntava-se. “E agora?”
Chorou quando sentiu o braço do pai à volta dele.
“Filho, já te vejo assim há um mês. Tu és novo, tens de ir viver. Hás-de encontrar alguém melhor, talvez ele não te mereça” ouviu o pai sussurrar-lhe. Olhou para o pai. Por segundos sentiu o coração cheio: o pai tinha aceitado bem o facto de ele ser gay, e embora lhe custasse saber, ali estava, a tentar dar o seu apoio. Mas ele não queria saber daquela conversa, não conseguia ouvir aquilo. Não havia ninguém como ele, ele que já não o queria. Não interessava quando ele gritava e o empurrava, porque eles eram um do outro. Ele surportaria tudo. Não voltaria a portar-se mal, a responder mal, a fugir, a dizer que era melhor do que aquela vida, do que aquele amor. Ele só o queria de volta, o seu amor, o seu grande amor. Não queria os outros, queria-o a ele! O pai não sabia do que falava. Teve vontade de afastar a mão do pai, mas não se sentia forte o suficiente para abdicar daquele amor, como se o pai também se pudesse ir embora se ele sacudisse o braço e o afastasse.
O telemóvel tocou. Era aquela música. A música dele. Ele!
Levantou-se a correr, foi até ao quarto. O ecrã não mentia. Ele. Atendeu com um “Sim?” tímido, e ouviu tudo o que ele tinha para lhe dizer. Fechou os olhos e chorou. Fechou a porta do quarto.
*
A mãe olhou para ele, arranjado, de calças de ganga novas e sorriso na cara. “Então?” sorriu também, ao vê-lo abrir a porta da rua “vais ter com os teus amigos?” O olhar expectante e preocupado da mãe queimava-o.
Ele, mãe. Ele voltou. Ele quer-me. Ele telefonou-me e eu ouvi o seu sorriso, e disse-me tudo o que estava certo, tudo o que queria ouvir. Ele. Por agora somos um segredo, vocês não compreendem, ninguém compreende, e decidimos ser um segredo, mas ele… Ele voltou. Sou dele de novo. Pensou. Quis dizer. Calou.
“Sim” respondeu simplesmente.
E fechou a porta da rua atrás de si.