Eram sete da manhã. Estava sentado nos degraus gelados como a noite. Não tinha dormido nada. Impossível, quando toda a casa cheirava a esperança.
Soube-o quando começou a decorar cada um dos risos dela. Surgiam como uma leve impressão no peito e tornavam-se explosão, vício, poesia.
Soube-o com a ponta dos dedos, quando lhe traçava as pálpebras, as pestanas, o nariz enrugado. Ou seria ela a percorrer os traços dele?
Soube-o quando aprendeu a diferenciar cada um dos sinais do corpo dela: um no peito, dois no fundo das costas, um nas pernas. Eram constelações e universos, jogos para unir os pontos e perceber o sentido de tudo. De que tudo? De todos os tudos. Com ela, seria capaz de resolver o sentido de todos os tudos.
Soube-o: tinham passado o limite.
No último dia, ela avisou: caso-me depois de amanhã.
O céu anoitecia com azuis e rosas tão violentos como nódoas negras. O silêncio no meio dos dois era afiado. Separava-os. Feria-o. Estavam tão longe e tão frágeis, eram reflexo do horizonte inalcançável. Todo aquele momento lhe era completamente absurdo.
Caso-me depois de amanhã. Ele sabia, mas não queria saber. Fechou os olhos.
Acreditou que a verdade só existia de olhos fechados, na escuridão, quando estamos nus e completos e vulneráveis, sozinhos com quem fomos e seremos e imaginamos ser. É nessa altura que sentimos mais, que sentimos melhor.
Ela tinha querido dizer: não vamos voltar a ver-nos. Ele sabia. Mas não queria saber. De olhos fechados, não existe mundo para nos destruir.
O cheiro do pescoço dela. A respiração dela no pescoço dele. A necessidade de se confundirem um no outro, de se recriarem como algo novo. Quando ela se vestiu e saiu, ele continuava de olhos fechados.
Sentado nos degraus gelados, olhava para o Sol atrás da torre da igreja. Sentia-se capaz de tudo. De todos os tudos. Não podia ser só ele a sentir, não podia ter sido só ele a passar o limite. Quando a visse chegar, ela perceberia também. E o mundo começaria ali.
Mas ela tinha-se casado no dia anterior.