Nestes dias melancólicos, carregados de memórias de tom escuro, recordo os meus que se foram. Todos me fazem falta, mas consigo manter o elo com alguns que teimam em ficar. São esses que conversam, de modo despojado, com a mestria dos dias de luz.
O Caldeira é um desses. Era um vizinho muito querido, estimado com carinho e parceiro de maluqueiras. Um homem que vivia sozinho e organizava a sua vida. O facto de ter uma particularidade, que passou despercebida a muitos, não fez dele alguém especial mas sim alguém de quem se gosta muito.
A vida quotidiana obriga a correrias e as colmeias de cada um fecham-se com facilidade. O café, belos e saudosos tempos, seria o ponto de encontro. Aí todo o tipo de fala acontecia, como se os dias ainda fossem de pureza e de sonhos que ainda terão lugar para existir.
Não me recordo como foi que chegámos à fala, mas o que sei é que tivemos uma relação com um nó forte e que juntou muitos. Ele era o ponto comum de muitos que se desconheciam. Nunca estava sozinho, ou seja, nunca se estava sozinho pois as palavras são como as cerejas e fluíam com naturalidade.
Independente, cuidava da sua vida com desembaraço até que percebi que ele tinha algo de diferente, a visão tramou-o à séria. Diabetes ignorados, pois já sabia da sua existência, deram em problemas graves. O primeiro passo para a cura passa pela aceitação e ele, técnico de farmácia, fazia de conta que não sabia. Ou pior, que não percebia.
Quando a situação ficou complicada, foi para uma instituição especializada para ter tudo o que precisava para a continuação da vida. Era novo e os anos seriam ainda em número grande para usufruir. Contudo, como se sabe, é uma incógnita.
Teve que reaprender a viver e a tarefa foi construída a par e passo com todos os que o amavam. A perda da visão apurou-lhe outros sentidos. E não se pense que se fechou, antes pelo contrário, abriu-se.
Culto, informado e atento, continuava a ter uma vida profissional. Mais mecanizada e rotineira, mas certa e eficaz. As viagens com ele, para o trabalho, eram épicas e tão divertidas que o tempo voava sem darmos por ele. Parecia que os planetas estavam alinhados até que piorou. Muito. Imenso. Demasiado.
Tínhamos um sistema de cuidado para que nunca se sentisse só. Era frequente perder os sentidos ou entrar numa espiral que nem ele sabia como a explicar. As doidas hipoglicemias passaram a ter uma terrível regularidade e só acalmavam com uma visita ao hospital.
Sinceramente, esquecia-me que ele não via. Nas fases boas, que foram muitas e com imensa alegria, éramos apenas dois amigos que falavam do dia a dia e de tudo o que fizesse sentido. Todas as nossas conversas dispensavam esse sentido apesar de fazerem todo o sentido. Ele ia piorando e a tristeza ganhava terreno.
Que dor deve ser perder esta qualidade de estar. Ver e deixar de ver não tem nome certo para se descrever. O que mais me doeu, e eu não tenho nada de maior a não ser saudades suas, foi perguntar-me, assim de repente:
– Como é que tu és? Deves ser atraente. Sinto que te olham na rua.
Pimba! Uma pedrada no meu coração! Os nossos mil e dois passeios por Lisboa eram de braço dado e ele sabia de cor os caminhos. Era lá que trabalhava. Esta pergunta ainda me baila na alma. Ser jovem é ser ingénuo, contudo, não perdi esta faceta. Ainda o sou apesar de ter largado a juventude algures.
Ficou tão doente que já não podia estar na sua casa e teve que receber assistência especializada num lar. Só que antes de mergulhar no final, que ele sabia o que estava a acontecer muito bem, fez as maluqueiras todas que quis. Todas! Doeu-me perceber essa dura realidade.
Como se sentiria ele? Nunca o disse. Não se queixava e deixava fluir os momentos. Sabia que a sua linha, aquela que é muito fina e estaladiça, estava a aproximar-se do fim do carreto. Aproveitou tudo a que tinha direito. Tudo!
Uma manhã não acordou. Todos nós perdemos uma pessoa única e extraordinária. Era o Caldeira, aquele amigo imprescindível. Estava sempre lá. Nunca falhou. João era o seu nome, mas, para quem o amava e continuará a amar, era o Homem que queria a morte fintar. Os anos passam, mas os meus mortos são regados e chorados com muito amor. Só assim se mantêm viçosos e coloridos, prontos para voltar a rir e chorar.