Foi o grande filme da carreira de Florian Henckel von Donnersmarck, podêmo-lo afirmar hoje, quase duas décadas depois, assente na arte com que o realizador e guionista alemão conta a história de um solitário agente da Stasi que, encarregado de espiar um escritor e a sua amante, se deixa levar por um humanismo que quase não reconhece para, passada a estranheza inicial, se deparar com o dilema entre o dever para com a missão e o regime, e o que sente ser o mais correcto.
Não foi a primeira vez que o tema foi tratado na tela, mas terão sido poucos os filmes que atingiram este equilíbrio tão frágil (e por isso, tão próximo da perfeição) entre a acção e o drama, ou uma sequência de acção com profundidade, como se a história que passa à nossa frente no grande ecrã nos convidasse a entrar para conhecer aqueles homens e mulheres presos numa triste RDA de 1984. Talvez em 74, Coppola tenha alcançado algo próximo com O Vigilante, mas a esse outro faltava-lhe aquela centelha comercial para fazer de uma obra de arte uma obra-prima, torná-la atractiva. O Vigilante permanece hoje memorável, mas sou mais por As Vidas dos Outros.
Talvez poucos filmes nos contem a lenga-lenga (repetida até à exaustão por gurus de auto-ajuda) do questionamento da profissão em que caímos (ou, indo mais longe, até mesmo da sociedade ou cultura que nos saiu na rifa da vida) com tanta subtileza como As Vidas dos Outros; e contudo, não deixa de ser por demais explícito o conflito que assola Gerd Wiesler à medida que vai espiando as vidas das vítimas de quem ele vai percebendo que o único crime foi viver. Martina Gedeck e Sebastian Koch, os espiados, completam o elenco principal, que tem no malogrado Ulrich Muhe o grande trunfo.
Muhe faleceu pouco depois de ter feito este filme, mas a personificação de um homem que aprende o caminho para o outro, que questiona as regras, agarrando o Bem para rasgar as escutas do Mal, catapultou-o. Vi-o pela primeira vez em Brincadeiras Perigosas, o belíssimo e macabro exercício de Michael Haneke para jogar com o espectador, e também aqui, Muhe é irrepreensível.
Se vi pela primeira vez As Vidas dos Outros em casa, num risco bem calculado pela compra de um DVD a cinco euros, revi-o mais tarde no Cineconchas, e quanta diferença no reencontro com esta obra no grande ecrã! Tudo se fez maior naquela noite do Parque das Conchas, da angústia por testemunharmos, também nós, espectadores-espiões, a intimidade de quem despreocupadamente julga viver uma vida à margem, ao caminho de conversão rumo ao outro de um homem solitário que albergava um enorme coração.
As Vidas dos Outros é um exemplo tão explícito de grande Cinema que só apetece gritar ao mundo para o ir ver! Tem ritmo e sentimento, é elitista ao ponto de nos elevar a todos a esse nível de elite pela forma desempoeirada, embora perfeita, como traz até nós toda esta avalanche. É quase poético este filme, de tão bonito, pese o sacrilégio de encontrar poesia num regime tão desumano. As contradições da vida e da condição humana.
Nota: Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico