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Terá mesmo a Europa uma identidade cultural?

Uma herança cultural é constituída pelos elementos que permitem a indivíduos de um grupo reconhecerem-se como portadores de uma identidade própria, diferenciada de outras, através da qual comunicam. Passa pelo património material e imaterial: a língua base, a arte, os monumentos, costumes e tradições, condicionamentos, adaptações e morfologia impostos pela história, geografia, clima. Resulta de um processo moroso de sociedades implantadas no espaço e no tempo que interagem com inúmeros fatores. Tem uma dimensão espiritual e antropológica ligada a valores humanos e identitários, éticos, estéticos, afetivos e outros. Interagem as dimensões religiosa e profana, testemunhos literários, cénicos e musicais, valores arquitetónicos e artísticos, padrões estéticos, matrizes eruditas e populares, marcas e vestígios de gerações passadas.

Talvez o início da consciência de uma identidade europeia tenha acontecido em 1929 e 1930, para evitar novas guerras. Depois da Segunda Guerra Mundial voltou a sentir-se a necessidade de refletir sobre o espírito europeu, o humanismo, a violência, a cultura, o progresso moral.

Havia a consciência de pertença europeia, de que a Europa reunia um conjunto de características de caráter histórico, civilizacional, cultural, filosófico, político, espiritual, racional, humanista, científico, que a distinguia de outros continentes. No entanto, esta visão do mundo contempla óticas não coincidentes em todos os pontos, pelo que tem de ser respeitada e preservada a diferença, prevendo mecanismos de comparação.

A CEE, e as instituições similares que se seguiram, trouxe a paz e a prosperidade económica no continente durante meio século, mas este já deixou de ser para os outros um exemplo. Alguns estados-membros também perderam o interesse na identidade cultural de milénios. Presentemente, há uma fação preocupada com a contemporaneidade e a circulação de criadores e obras, em que Tóquio, Nova Iorque, Paris e Frankfurt dominam e não se distinguem.

A herança cultural traz a responsabilidade da perseverança e transmissão de valores e testemunhos. Parece ser o comportamento humano ao longo de milénios que põe em causa esses valores. Daí os contornos de imprecisão da ideia de identidade cultural.

Que riscos corre a identidade cultural europeia?

A Europa exportou-se para o mundo. Comportamentos e conhecimentos, foram sendo disseminados por outros continentes, uma transmissão acelerada pelas novas tecnologias, uma certa descaracterização.

Assistimos a um excesso de autocríticas por parte da Europa quanto ao seu passado histórico, aos seus valores, às suas realizações. Vejamos o exemplo dos lugares sagrados, os primeiros a serem atacados, aquando de guerras internas e externas. Eles permitem uma ancoragem cultural entre o mito e a realidade. Têm significado do ponto de vista religioso e simbólico, uma perspetiva de tolerância com a existência e a partilha. Há necessidade de preservar a identidade própria desses lugares, a tradição religiosa, a arte, a paisagem, as relações completas da coexistência humana com o espaço e tempo de cada época histórica. Culturas diferentes, mas que têm entre si afinidades evidentes e cuja tradição histórica, entrelaçada há séculos, testemunha a existência de raízes partilhadas, um verdadeiro potencial de entendimento. O lugar mais sagrado de todos é a memória. Momentos como a Antiguidade, o Renascimento, a Reforma, o Iluminismo; batalhas e tratados diplomáticos; acidentes geográficos; práticas económicas e culturais; focos de ciência e arte. Esta nunca será apagada.

A indiferença dos mais novos, a passagem do tempo, a globalização generalizada de tecnologias, sobretudo as da comunicação, o confronto dos mundos, a competitividade à escala mundial são outros riscos.

Que não o seja a crise financeira, política e social, já que o património cultural pode oferecer possibilidades de criação de emprego e qualificação prática e teórica a uma parte da população, especialmente a mais jovem. Muitas atividades ligadas ao património podem ser suportadas por autarquias e instituições locais, regionais ou nacionais e abrir espaço a projetos de sucesso.

A Europa é a unidade civilizacional, de largo perímetro geográfico, que há mais tempo e mais profundamente se interroga sobre si mesma, questionando a sua própria identidade.

As questões de identidade cultural europeia têm sido um aspeto a considerar na relação do nosso país com os outros territórios europeus. Fomos sempre agentes de um diálogo intercultural que nos permite povoar o espaço da memória. Possa Portugal continuar a ser um garante dessa identidade, sabendo preservar e receber a cultura existente e a nova que se vai formando.

Sim, a Europa tem uma identidade cultural. Feita de tempos, espaços e pessoas. Sofreu, sempre, uma constante renovação, que é, hoje, mais rápida e dinâmica. Acultura-se da mesma forma que aculturou outros continentes, mas é única. Talvez esta seja uma forma de contribuir para pacificar os europeus. Cultura e paz — um binómio de identidade europeia.

Nota: Este artigo foi escrito segundo o novo Acordo Ortográfico.

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