Amritsar

Amritsar, 10 de Janeiro de 2025

Um frio de rachar.

O plano era ficar num hotel mediano, num quarto com chuveiro e ar condicionado, conforme mencionava a reserva no Booking. Como faz mais calor que frio, ali, o ar condicionado existe precisamente para aliviar as altas temperaturas, não para aquecer. Percebemos depois porque estava desligado, como tantos outros que encontramos. O chuveiro, objecto, estava lá – ao menos isso –, mas a água não tinha pressão suficiente para que cumprisse a sua função. Um banho esperava-nos com cara de balde e jarro de plástico colorido. Era o primeiro banho depois de uma cadeia de voos que começou às sete da manhã em Lisboa, com escala em Abu Dhabi, depois Delhi, fila para obter o carimbo do visto no passaporte, levantar bagagem e embarcar num voo doméstico para Amritsar, às seis da manhã da Índia. Levantar malas outra vez, filas de segurança que não perdoam e fazer o trajecto para o centro da cidade para encontrar o hotel. Moídos, mas decididos a tomar o pulso ao fuso horário, íamos aguentar mais umas horas acordados, até o dia acabar. Tomar um chai para aquecer e tentar perceber esse fascínio que aquele shot de chá preto, gengibre, especiarias, leite e muito açúcar, exerce naquela região do mundo. Visita à fronteira com o Paquistão, a cerca de 30 km de Amritsar, onde está instalado um espectáculo surpreendente com militares que mais parecem animadores de TV. A adesão é massiva. O orgulho naquela cerimónia é surpreendente. Canta-se, dança-se e invoca-se a grandeza nacional dia sim, dia sim. É como se fosse o render da guarda inglês no meio de um carnaval, um híbrido muito pouco solene. Não me pareceu imprescindível. De volta ao hotel, esperava-nos o banho, à gato.

E mais frio.

O motivo que nos tinha levado àquela cidade, um pouco fora de rota, era o Golden Temple, nomeado como o mais importante lugar de culto da religião Sikh, para onde peregrinam em acto contínuo, chegando de todo o país. Este lugar sagrado abre-se a todas as religiões, credos, convicções, é esse um princípio instituído. Recebe entre 50 e 100 mil visitas diárias, muitos siks e todos os outros, a quem se exige apenas que respeite o código de conduta: indumentária decente (a ter em conta sobretudo no verão), cobrir a cabeça (os turbantes dos sikhs ou qualquer lenço que esconda o cabelo), desprendimento de qualquer hábito ou objecto tóxico (cigarros, isqueiros, pastilhas), descalçar e lavar os pés. Permanecer descalço dentro do recinto. Mais frio.

Estes espaços, templos sikhs, são conhecidos pelas cantinas que oferecem refeições gratuitas a quem os visita. O Golden Temple de Amritsar tem um Langar onde servem entre 50 a 100 mil refeições diárias, sendo que qualquer pessoa, independentemente do seu credo ou falta dele, pode ter acesso a uma refeição digna. No Punjab, os sikhs são maioritariamente vegetarianos, com convicção veemente nos templos. Almoçámos entre centenas de pessoas, quase em silêncio: naan, arroz, dahl, kheer.

Muitos visitantes fazem donativos monetários, agradecendo, outros contribuem com o seu trabalho, voluntariando-se para o que seja preciso. Foi isso que fizemos, lavando alguns dos milhares de pratos que parecem jorrar sem fim daquela cantina aberta. Para trabalhar, mulheres para um lado, homens para outro. Linha de montagem.

Aquela cantina é, na realidade, uma fábrica, uma linha de produção massiva: descascar, cortar, preparar… vêem-se vinte ou trinta mulheres em círculo, sentadas no chão, só a descascar cebolas, outro círculo, ao lado, para descascar nabos, outro, cenouras, além, alhos, em sectores organizados. O mise en place faz-se em rodas coloridas pelos saris que vestem aquelas mulheres. Os cozinhados, noutra sala, nascem de panelas que mais justamente se chamariam tanques, onde se cozinham quantidades assombrosas de comida. O dahl é mexido com uma colher de pau do tamanho de um homem robusto, revezado periodicamente para aliviar um pouco aquele trabalho braçal. A produção das refeições desenrola-se, não numa cozinha, mas em várias. Interprete-se junto da letra.

Come-se numa sala ampla que se vai desenhando em inúmeras filas paralelas, formadas por pessoas que se sentam no chão, costas com costas, deixando defronte um corredor de um metro que as separa da dupla fila seguinte. Não contei as filas, lamento agora. Perfilam-se os homens que servem a refeição e vão passar sincronizados em cada corredor: primeiro o que leva a água, seguido por um que larga os 2 naans do ar a cada freguês, depois um que serve o arroz, depois o dahl, naquele prato de inox tão característico e fundamental para compartimentar os diferentes elementos do almoço.

Antes de nos sentarmos ali, de pernas cruzadas, passámos por um processo iniciático. O trajecto começou por nos levar a lavar os pés novamente. Frio. Lavar as mãos e estamos prontos para seguir uns atrás dos outros, por corredores e labirintos, a fim de apanhar o prato, o copo ou taça, a colher, o necessário, nada mais. Há homens que nos vão guiando no trajecto e dando as indicações necessárias até nos acomodarmos naquele código de barras humano. Servem-nos metodicamente e voltam a passar mais tarde, caso queiramos repetir. Mais naan, mais dahl, num ritmo cadente que não esmorece.

Podem ser 100 mil refeições diárias, não se pode ficar a fazer sala. Come-se em comunhão, em partilha silenciosa. Comido, as filas começam a desfazer-se, até se transformarem em pontos desconexos, solitários, que acabam por se retirar, deixando a sala vazia, levando consigo prato, copo, colher. O trajecto recomeça na ordem inversa, larga colher aqui, prato ali, copo acolá.

Enquanto nos desfazemos daqueles artefactos, há homens que, coordenadamente, encharcam o chão dos corredores da cantina, onde há momentos sentámos-nos, agora sem gente, para outros, logo a seguir, acudirem com uma esfregona e deixar o espaço limpo para o próximo turno. Esta coreografia repete-se todo o dia, todos os dias da semana.

É, de todas, a refeição que guardo com mais carinho, com mais ternura e, ainda, com alguma perplexidade. Tudo isto é feito por trabalho voluntário. Mais de 50 mil refeições diárias. Encomendar, limpar, distribuir tarefas, cortar, descascar, cozinhar, organizar, tudo em regime voluntário. Voluntário. Os alimentos compram-se com dinheiro proveniente de doações. Uma máquina oleada com a boa vontade de muita gente. É impressionante e é possível.

Esqueci-me do frio.

Nota: Artigo escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico

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