Prólogo
Contrariamente à Argentina, da qual levava na bagagem inúmeras referências, fossem elas literárias, cinematográficas, históricas, gastronómicas ou até familiares, sobre o Chile o meu apagão era quase total em cada uma destas vertentes.
Aqui e ali, li um ou outro verso (nem sequer um poema completo) de Neruda, vi e li (e reli) o delicioso O Carteiro de Pablo Neruda, O Velho que Lia Romances de Amor, de Sepúlveda (não gostei) e num longínquo festival de cinema da capital, talvez o Doc, vi no São Jorge o documentário La Spirale, todo ele feito de imagens reais mostrando o golpe militar de Pinochet para derrubar Allende, sugerindo o envolvimento dos Estados Unidos (hoje sabemos ser verdade; em 1976 não era tão fácil).
E isto era tudo o que sabia do Chile. Ou quase tudo. A Melina, uma amiga argentina que há anos ficou uns dias em minha casa havia-me dito que o Chile é muito desenvolvido, e o Armando, primo do pai da Sofia disse-nos que era um país economicamente muito estável. Alguém havia também falado na simpatia deste povo. E agora sim, era tudo.
Santiago do Chile
À semelhança de Buenos Aires, há muito que Santiago assumiu uma aura quase mítica, pela carga histórica que trazia da década de 70 (e pelo título do filme que nunca vi, Chove em Santiago), como um dos pilares mais sólidos das ditaduras sul-americanas, talvez mesmo o que mais alto (infelizmente) chegou na História, e assim ao resto do mundo.
E é tão agradável quando a expectativa é lavrada pela realidade sem grande agitação ou cagança, e damos por nós contentes a passear pelas ruas centrais da capital chilena, verificando a simpatia que eu trazia sob desconfiança, visitando a História e a geografia incaracterística desta cidade.
Do Cerro Santa Lucía, uma pequena elevação no centro da cidade e a primeira a que subimos, tivemos um vislumbre inicial da dimensão imponente desta metrópole. Santiago encontra-se rodeada de montanhas por todos os lados, ajudando a fazer deste um lugar único, paisagística e climaticamente. Com os Andes a ocidente e a cordilheira da Costa a oeste, a neblina que habitualmente paira sobre a cidade é um combinado de humidade e poluição, que raramente se dissipa durante o dia.
Seguimos a pé até à Praça de Armas, onde se encontra a Catedral de Santiago, ouvindo sempre a explicação interessantíssima do guia que nos acompanhou por três ou quatro horas, explicação essa que se me varreu quase na totalidade, agora que escrevo estas linhas, menos de seis meses passados. Ainda bem: não só há coisas que fazem sentido ficarem na experiência vivida, e os detalhes formam parte desse lote, como a vida se encarrega de triar o que faz sentido trazermos connosco.
Mas lembro-me da explicação, por ser uma dúvida antiga, para o surgimento do golpe de estado que derrubou Allende. A primeira eleição democrática de um governo comunista, a nacionalização de uma empresa inglesa, a chantagem desta em não laborar, a retirada da maquinaria, a preparação do golpe de Pinochet com o apoio americano, tudo isso foi explicado junto ao Palácio de La Moneda, um dos pontos mais esperados. Não sendo tão imponente como a ideia que eu levava, esse facto jogou, na hierarquia dos sentimentos, a favor da experiência – tal como evoco quase sempre o 25 de Abril ao passar junto ao quartel do Carmo, também ali era a História que emergia, colando inúmeros fragmentos – La Spirale, o julgamento de Pinochet, as conversas com o Javier depois das aulas de espanhol sobre tudo (o Chile e a defesa solitária do intelectual Allende surgiu um dia nas nossas conversas)…
Fomos depois onde tínhamos (ou eu tinha) que ir: O Museu da Memória e dos Direitos Humanos, uma construção moderna para retratar os males antigos da ditadura. Não é necessário explicitar os horrores dos testemunhos, dos filmes, descrições, fotografias… torturas que perdem o embrulho da ficção quando as vemos num romance, num filme ou até mesmo num relato histórico, e ganham contornos de abismo quando descritas na primeira pessoa, quando um filho fala de um pai que nunca conheceu, uma mulher conta, com detalhes, o que lhe fizeram, as manifestações, a violência policial ou do exército, a camaradagem possível nas prisões, os desaparecimentos…
Valparaíso
Atravessámos a cordilheira da Costa e passámos pelos vales vinícolas de Curacaví e de Casablanca até chegarmos a Valparaíso, para o nosso primeiro contacto com o oceano Pacífico
Cidade multicolor, pejada de colinas e elevadores, ao estilo lisboeta, diríamos nós, só que num estado mais selvagem, mais puro, a arte urbana em força aproveitando cada parede não para a vestir de grafitis, mas para a pintar com os motivos mais diversos, seja um gato, uma causa ou uma forma disforme.
A Sofia adorou Valparaíso; eu gostei. E se este “gostei”, em contraste com a opinião dela, pode parecer “é uma merda”, não é assim. As artes visuais são muito mais a sua praia do que a minha. Passeámos pela cidade e pelos murais, casas, escadas, pintados, fomos identificando os artistas locais pelas pinturas (orientados pelo guia, claro – ler enciclopedicamente antes da viagem para colar com cuspo meia dúzia de efemérides… é que está quieto! Não é para mim.).
Almoçámos com vista para o mar em Viña del Mar, poucos quilómetros a norte da cidade, um aglomerado que não nos encheu as medidas, mas que serviu o propósito para vermos o único Moai fora da Ilha da Páscoa (além daquele que os ingleses levaram… perdão: preservaram.).
Valparaíso é uma cidade que nos ofereceu algo diferente de tudo o resto nesta viagem. Vindos da aventura argentina, fosse ela pelos parques naturais da Terra do Fogo ou da Patagónia, do Perito Moreno ou do Canal Beagle, e de Buenos Aires e a sua pujança histórica, cultural e multicultural, passados por Santiago, muito diferente da capital argentina, mas ainda assim, sendo possível traçar uma linha de continuidade entre as duas cidades, chegados a Valparaíso, entrámos noutro mundo, urbano ainda assim, mas outro mundo, mais anárquico, saborosamente anárquico. Uma cidade que busca a sua ordem dentro do caos por entre dezenas de colinas, e não obstante nos consegue convencer de que este caos mais ou menos organizado, configura uma forma de ordem. Um paradoxo que talvez encontre analogia na Teoria do Caos, quando à medida que nos aproximamos de um fractal, constatamos que aquela forma aparentemente desconexa segue uma lógica, a sua, por vezes até bem férrea e disciplinada, muito trabalho para passar a ideia de caos. Como Valparaíso. Um gigantesco museu a céu aberto e o lugar de toda esta aventura de três semanas, que recordo com mais carinho (e só lá estivemos três ou quatro horas).
Santiago do Chile
Talvez Santiago tenha sido a cidade, de toda a viagem, de que a Sofia mais gostou. A minha preferência oscila entre as duas capitais. Totalmente diferentes no enquadramento, há muitos pontos que as ligam, da história sofrida no século XX a uma arquitectura (e uma vida) “europeizada”.
Nesta segunda passagem pela capital chilena, subimos no teleférico ao Cerro San Cristóbal para, do santuário cimeiro ter uma nova perspectiva da cidade. Na subida, enquanto silenciosamente lutava contra as vertigens, pudemos ver um lado escondido de Santiago, um oceano de construções que, das alturas, nos pareciam barracas; talvez não o fossem, mas nada tinha a ver com as formas cosmopolitas do centro; como o colorido da extensão “quase” de lata que vimos do avião ao levantar (ou a aterrar) em Buenos Aires, onde uma autoestrada cortava literalmente a cidade entre ricos e pobres, também no país de Neruda a capital se partia em duas: pelo menos foi o que nos pareceu do ar.
Regressados ao ponto de partida, contornámos o jardim e o morro para visitarmos um lugar que entrou (juntamente com o Museu Eva Péron) para o artigo eternamente inacabado dos pequenos museus mais fantásticos que visitei, a casa de Neruda em Santiago: La Chascona. Esta é daquelas palavras que dá gosto escrever (e dizer) sem cair em pecado, como Xaputa ou o treinador alemão Franco Foda. Mas voltando a Chascona, entrar na casa é passear pela mente de Neruda: recantos aconchegantes de dimensões apertadas, percursos labirínticos que obrigam a sair para pequenos pátios exteriores e entrar noutras divisões, mínimas, escadinhas, mesas para receber os amigos, sofás de leitura virados para uma janela envidraçada sobre Santiago. E no meio de tudo isto, nós a imaginarmos Neruda e Matilde idealizando tudo aquilo, a casa dos seus sonhos, hoje engolida pelo betão em volta, sem a vista de então sobre a cidade, a casa destruída pelos piolhosos do golpe de estado logo após a morte do poeta, e a luta heróica de Matilde para a reconstruir, num longo gesto de recuperação da memória, íntima e histórica.
Tivéssemos nós aterrado em Santiago, seguido directamente para La Chascona, passado lá aquela hora ou hora e meia e regressássemos de imediato para Buenos Aires, e já a viagem teria valido a pena.
Epílogo
A Sofia gostaria de voltar ao Chile. De Atacama à Patagónia chilena (mais verde do que a paisagem desértica da Patagónia argentina), muito ficou por ver deste país (também ele) fascinante. Talvez seja ingrato terminar com uma entrada (lida agora pela primeira vez, e por isso mesmo, ainda, e quiçá para sempre, em bruto) do que escrevi no caderno de viagem (e que nunca terei paciência para passar para computador), mas as experiências aeroportuárias da América do Sul merecem uma referência, e a da chegada a Santiago do Chile uma referência especial:
“Santiago, 23 de Abril de 2025
“(…)
… depois do longuíssimo e extenuante dia, aterrámos já de noite, 20:30 talvez. Saindo do avião quase na dianteira do pelotão de malas a cair aos trambolhões e marrecos com pressa para sair do charuto voador, dirigimo-nos calmamente para pegar a bagagem (julgávamos nós!). Uma puta de uma fila para o controlo de passaportes mais longa que uma lombriga saída da mala do Sport Billy! Eram 4 ou 5 voltas entre cada fiada de passageiros quase a perder de vista. O pior: não andou 1 centímetro nos primeiros 5 minutos! ‘Cona da tia!’ disse eu em voz alta, mais uns quantos ‘Foda-se!’ que somente os brasileiros entendiam (sem se manifestarem), sem resultado pois, por maior que fosse a boa vontade, o optimismo ou a visualização criativa, a verdade é que os passinhos que encurtávamos para darmos mais, de cada vez que a bicha avançava 1 metro, tinham o mesmo efeito na nossa esperança do que o efeito que sucessivos anúncios de diminuição de impostos têm no dinheiro que trago para casa ao final do mês. Um caralho!
A dada altura aparece um funcionário mais esperto que os outros, que começa a distribuir os passageiros pelos diversos guichets. Ficou melhor, mas não foi suficiente pois nisto a fila já havia engrossado (ie, alongado) com a maralha vinda dum voo lá dos confins do caralho andino. Toca de encaminhar a malta para outro conjunto de cabines, creio que dos prioritários, ao fundo, que estavam vazias com os funcionários a coçar a micose. Colocámo-nos numa fila, obviamente a única que não avançava. Raios me fodam! Vem um gajo para os colhões do fim do mundo e o puto que deve verificar os passaportes tem o telemóvel apontado para ele a passar um jogo da bola. 20 minutos depois, lá passámos o cabo das tormentas. Ou assim o julgávamos.
Dobramos uma esquina e quando nos afiambrávamos para finalmente levantar a bagagem e seguir para o hotel, outra serpente de gente está a formar-se, desta vez para o controlo de malas! Ainda perguntámos à senhora à nossa frente se era obrigatório revistarem-nos as bagagens: se ela dissesse que não é que era de admirar! Minha rica União Europeia! Exclamei, e depois reiterei: ‘Estou tão arrependido de termos vindo para este país!’.
Mas ainda não tinha acabado: uma pequena prole de 10 espécimes aproxima-se sorrateiramente pela direita e, estando uma representante a guardar lugar, toca de mamar a vez aos otários, como nós, que estupidamente achávamos que os lugares nas filas ainda eram para respeitar (tão séc. XX!). 10 minutos depois, passámos a última fronteira. Disse por piada à Sofia ‘A nossa mala já deve ir na Ilha da Páscoa’. Felizmente não ia, mas pela primeira vez na vida encontrei a mala à nossa espera fora do tapete, tal não foi a eternidade enconada que demorámos nesta gincana de apanhados.
O tipo que nos conduziu ao hotel, fodido dos cornos pelas horas de espera com o papelinho com o nosso nome levantado em desespero, embora nos mostrasse a sua contida simpatia chilena, voou de um lado ao outro da cidade para nos deixar. E deixou-nos, e nós fomos tomar um duche e dormir, esperando que o amanhã invertesse a curva da sorte. Assim aconteceu, felizmente!”
PS: Dada a presença de Gabriela Mistral ao virar de cada esquina, fiquei com curiosidade de explorar um pouco mais, mas o Nobel foi-lhe dado pela poesia… tenho que crescer para conseguir apreciar poesia.
[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]