Ágatha nunca conseguiu perceber a noite

— acho que a noite é impossível, Beatriz. como é que pode ficar escuro, se há milhões de estrelas como o sol penduradas no céu?

fez-se silêncio, mas não aquele de desconforto. era o outro, o que trata de regar o solo onde florescem os pensamentos (e o amor também, mas para já nenhuma delas se interessava muito por essa questão).

Ágatha acariciou o queixo, para se sentir um pouco mais filósofa, e rematou,
— só se alguém se der ao trabalho de ir lá acima todos os dias para tapar a luz com uma manta velha, cheia de buraquinhos. mas acho que não, a manta teria de ser gigante.

a janela da sala tinha vista larga para o tal pano escuro pintalgado de astros. empoleiradas nos bicos dos pés, passavam horas com as cabeças encostadas ao vidro. daqui de onde as vemos, é impossível não reparar no contorno irregular daquelas carapinhas desalinhadas de liberdade, que bonitas.

lado a lado, iam saciando a curiosidade dos olhos com o movimento pendular da rua. um bairro pobre. social, como se diz nas notícias.

Beatriz morava ali ao lado e por isso, depois das aulas, acabava por passar o tempo livre na casa de Ágatha. nenhuma delas tinha jeito para fazer amigos, mas encontraram uma na outra um certo alívio para o peso da solidão, da timidez e da cor da pele. apesar de serem diferentes, sempre concordaram no essencial: não tinham paciência para quem se acha demasiado crescido para dançar, brincar descalço na relva ou comer gelados no inverno.

pouco depois de o bairro se vestir com as luzes dos candeeiros — já que as estrelas não chegam para iluminar a noite —, cumpriam assiduamente o mesmo ritual. abandonavam o prédio velho e iam para a paragem do autocarro esperar a mãe de Ágatha, mulher negra, solteira, operária fabril, explorada e infeliz. Beatriz fazia-lhe sempre companhia até que o autocarro chegasse. depois, um abraço aconchegado, um aceno sorridente, vemo-nos amanhã!

nesse dia, desciam a rua com particular leveza. faziam o caminho saltitando, como se flutuassem sobre a superfície lunar — e por falar nisso, será que por lá existe noite? Ágatha achou a questão pertinente, mas não conseguiu chegar a uma resposta, atendendo ao número de vezes que teve de congelar o raciocínio astrofísico para saudar os vizinhos. já se sabe, os adultos não percebem grande coisa de prioridades e ralham frequentemente com crianças que andam com a cabeça na lua.

mas, de repente, a violenta eclosão de uma voz de metal monopolizou o espaço, o tempo e a direção dos olhares. dirigindo-se à mota que se esgueirava vertiginosamente rua acima, um polícia hirto e baixo, não falamos da sua estatura, cuspia com desdém:
— pretos do caralho! vamos matar-vos, filhos da puta.

apesar do esgar de terror desenhado em todos os rostos, aquelas frases habitavam o bairro desde sempre.

Ágatha e Beatriz sentiram-se invadidas por um medo paralisante. durante aqueles segundos, o centro gravitacional da rua transferiu-se para a arma empunhada pelo agente ventura. seguiu-se um estranho momento silencioso de

suspensão

e, por fim, a raiva que lhe cerrava os dentes, implacável e cega, explodiu três vezes no gatilho. as balas, que só estão perdidas enquanto não se saciam de sangue, não chegaram a encontrar a mota.

ao perceber que um dos projéteis se dirigia a Ágatha, Beatriz, num derradeiro gesto de amor, interpôs o seu corpo no curso dessa marcha fúnebre iniciada no cano da pistola. mas a sua anatomia era feita desse tecido transparente que reveste as coisas que só existem dentro da nossa cabeça, como os sonhos e os mortos. ou os amigos imaginários, como ela.

a bala enterrou-se violentamente no peito de Ágatha. assassinada às mãos de um ódio desmedido, numa guerra que nunca lhe pertenceu. pouco depois, um destroço de mãe haveria de cair no precipício infinito daquele corpo franzino e frio. corroída pela angústia, haveria de perder a fé em deus. dias depois, haveria de prometer que aquele luto se transformaria em luta.

Ágatha, oito anos, morreu sem chegar a perceber o que tinha de mal a noite da sua pele.

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