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A noite será breu

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A lentidão. O escuro. O silêncio.

O carro avança devagar como num cortejo fúnebre. Olhamos sem querer entender que tudo à volta é negro, vazio, infeliz. As paisagens apertam-nos a garganta, apertam e apertam e apertam até doer no peito, até sufocar. Se respirarmos, sentimos o cheiro do fogo, da morte, do medo.

Não falamos.

Não queremos. Não podemos. Não sabemos.

Porque já não existem árvores, apenas cinza. As nuvens tapam o sol e o céu é branco, ilusório e frio. A viagem de regresso ao que nunca mais será. Aquele lugar de passado e infância tornara-se meio sonho e meio pesadelo, os risos das memórias fazem eco longe, bem longe, entre o verde do mundo e o azul dos mergulhos do tanque e o amarelo das tardes de gargalhadas que conhecíamos.

Passamos devagar por pessoas quase paradas. Avançam sem destino. Dentro dos olhos, o vazio das suas vidas. Os gritos e choros de antes são agora um exasperante luto, ruidosamente calmo, desconfortavelmente silencioso. As que nos conhecem cumprimentam-nos levantando a mão sem vontade, sem âmago de sorrir. Devolvemos o reconhecimento da mesma forma, sem sorrir, de expressão carregada e tentando que percebam, só com um breve aceno de dedos abertos, que queremos dizer tanto mas não sabemos o quê, que lamentamos aquilo tudo, o passado e o futuro.

É uma infelicidade que se toca.

Paramos o carro. Na aldeia ainda sobra um pouco de verde, parece deslocado do negro, daquele negro tão negro que é uma noite. O verde é um estranho no meio da cinza, da desolação. As casas queimadas não estão ali. A aldeia está inteira, mas à volta tudo grita a morte. Os nossos estão vivos, mas eram amigos e primos e irmãos dos que não estão. Os nossos ficaram com as casas e os animais, mas riram e festejaram e trabalharam nas aldeias que já só contam com fantasmas – eram os caminhos para ir ao cabeleireiro, para ir fazer compras, para ir à praia fluvial, para ir buscar o leitão em dias de festa.

Hoje, nem um pássaro canta. Pergunto-me se também ficaram presos no fogo, cegos pelo fumo, como as ovelhas e as galinhas que fugiam em pânico, os cães acorrentados e os gatos com ninhadas. Como as pessoas. As pessoas que desesperavam, que ajudavam, que lutavam com e sem uniformes, que viam o mundo a acabar, impotentes. As crianças, os bebés, as mulheres e homens que correram para lugar nenhum, em direcção ao medo, e se tornaram cinza, números nas notícias, tragédia e dor. Ou os que ficaram de coração a bater e a desejar não estar, entre uivos mudos de terror e um corte tão fundo que nunca mais poderá sarar.

Enquanto isso, andam devagar e sem rumo, rasgadas e a perder pedaços, porque a vida faz-se para a frente. Até quando à frente não há nada.

O sol está a pôr-se e não posso evitar arrepiar-me com as cores de fogo. Penso na noite iluminada pelo incêndio, no cansaço e na coragem. Hoje, temos sorte. Hoje, a noite será breu.

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Rosa Machado
Curiosa e fascinada pelo que não compreende, bicho dos livros e criadora compulsiva de hipóteses mirabolantes. O tempo não existe quando há conversas filosóficas sobre nada, gargalhadas dos amigos, abraços a animais, viagens pelo mundo e todo o tipo de arte.

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