Uma Doença

Esta não é uma crónica de um especialista daqueles que estudam doenças e que conseguem definir conceitos médicos, esta é uma crónica de uma doença vista pelo lado de dentro.

Durante anos e anos, sofri de dores que não conseguia explicar. Quando ia ao médico, levava comigo um conjunto de queixas que pareciam não ser reais, dada a sua duração e o facto de, apesar de todos exames feitos, não haver uma explicação para a minha sintomalogia

Um dia tinha dores de estômago, noutro num joelho, noutro ainda na mão ou no pulso. Passei anos a esconder, mal escondidas, as minhas dores e as minhas queixas, aguentando valentemente as dores que saltitavam de uma parte do corpo para outra e depois para outra.

Mesmo que uma queixa durasse o tempo suficiente para a dar a conhecer, a verdade é que, com o tempo, ela acaba por passar para outro sítio. Começou a incomodar-me as pessoas perguntarem se eu “estava melhor” porque eu nunca me recordava do quê, porque afinal, depois da maleita pela qual me perguntavam, eu já tinha tido várias, todas diferentes.

Nos médicos acabei por nunca dar o quadro geral das minhas queixas e apenas apresentava os sintomas presentes da altura. Cheguei a brincar, devido ao resultados dos exames, que iria ser uma defunta cheia de saúde.

Passei por três gravidezes e quatro operações, estoicamente pelo que me vi a reconhecer mais tarde.

Fui-me habituando a conviver com a dor, mas infelizmente, como ninguém vai para mais novo, as queixas foram aos poucos tendo alguma tradução nos exames e análises.

Inflamações, olhos secos, dores nos pés, rigidez muscular, dores nas articulações, comichões, vontade constante de urinar, a crescente falta de concentração e perda de memória e por aí fora, foram uma constante na minha vida.

Abençoada a médica do trabalho que, num ato muito pouco profissional, me disse, após eu ter metido baixa e lhe explicar os motivos, que eu sofria de fibromialgia e que ela, médica, considerava ser isso uma chamada de atenção e não uma doença física. Após muito alarido, lá chamou uma psicóloga que aceitou dar-me uma consulta, porque as minhas depressões seriam a causa das minhas dores.

Errado e certo!

A verdade é que a terapia que tenho tido, ajudou-me a aceitar um diagnóstico que já me tinha sido várias vezes sugerido pelos médicos, mas sempre como uma hipótese, como uma explicação encontrada por não existir outra melhor.

Não é fácil aceitar um diagnóstico que é feito por exclusão de partes e não é fundamentado com exames e/ou análises.

É um diagnóstico feito sempre em cima de um enorme ponto de interrogação.

Após muitas pesquisas e com a ajuda da psicóloga, acabei por não só aceitar como validar este diagnóstico com o meu historial. Fui encaixando peças e acabei por perceber que não foi a depressão que desencadeou as dores, nem as dores que desencadearam a depressão: foram ambas.

Meio pescadinha de rabo na boca: se as constantes dores me propiciam um mal estar psicológico, a depressão também potencializa uma tradução física que se reflete em dor.

Esta doença é também muito ingrata pela maneira como é aceite pelos outros – pode ser confundida com preguiça ou desleixo da pessoa que a sofre. É impossível provar uma dor, porque esta não se vê e, quando não existe um diagnóstico médico concreto, parece estranho a qualquer um que uma pessoa esteja sempre com dores.

Porquanto, uma pessoa que sofre de fibromialgia é vista como um ser piegas. Não é. Neurologicamente, a sensibilidade à dor de alguém que sofre desta estranha doença é muito superior a outra qualquer pessoa. Se isto acontece com as dores mais leves, imaginem aumentar a intensidade de uma enxaqueca normal, ou de uma dor de dentes ou ouvidos. Imaginem o que são as dores menstruais e as contracções num parto, muito mais intensas que o normal.

Agora imaginem dores leves intensificadas durante 24 horas após 24 horas, dias e dias, semanas após semanas, meses e meses seguidos, durante anos.

Quem não sofre de saturação e fadiga crónica neste tormento, diria mesmo neste inferno, permanente?

Muitas pessoas sofrem desta doença caladas porque não são compreendidas e ainda existem médicos que não estão sensibilizados e dentro da complexidade daquilo que é fibromialgia.

Mas ninguém tem o direito de dizer que a dor física ou psicológica é uma chamada de atenção. Ninguém tem o direito de julgar o que não conhece, nem sequer formar um juízo daquilo que tem a sorte de não sentir.

Eu ainda estou num processo bastante duro para encontrar medicação que me possa devolver uma certa qualidade de vida, sendo que cada caso é um caso e eu, ainda por cima de tudo isto, sou sensível demais à medicação – sinto-me drogada e a dormir em pé.

Deixo aqui o meu testemunho na esperança que outros como eu, procurem ajuda especializada e encontrem alívio que merecem. Não é um caminho fácil e somos demasiadas vezes incompreendidos. A fibromialgia é uma doença crónica que requererá um tratamento também ele crónico e adaptado a cada situação.

Procurem ajuda!

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