Sobrepopulada

A paz é abruptamente interrompida pelos gritos do alarme em desespero para se libertarem do telemóvel. Uma mão sonolenta silencia-o e ele desiste sem emotividade. Sabe que amanhã terá nova oportunidade. Ela levanta-se, abre as cortinas e as persianas que protegeram o mundo dos seus sonhos. A claridade é ainda jovem em início de dia. O sol reflecte a sua vida lá no alto, no topo dos prédios em frente, quase não tocando os andares mais baixos. Vista de fora, ela é apenas uma pessoa mínima a mostrar-se ao mundo por entre milhares de outras, uma personagem num padrão repetitivo até à exaustão.

Quando chega o autocarro respira fundo. Chegou como era esperado, à hora esperada, da forma esperada. Ela e todos confiavam nisso para se ausentarem das surpresas desagradáveis que alterassem a rotina. Segue sentada junto a uma janela. A cada paragem assiste a rostos que não reconhecia, mesmo vendo-os todos os dias. Deixa-se distrair por momentos olhando a cidade que adoptou como sua. Ainda jovem ali chegou sem saber que chão pisar. Em poucos dias conheceu uma cidade cheia de vida, repleta de segredos por desvendar e de recantos por descobrir. Encantou-se pela paisagem urbana, selva de betão respirando cores de edifícios, viadutos e outras estruturas, e nos parques e jardins que despontavam na rede simétrica de ruas a espaços regulares, como clareiras de luz numa floresta tropical. Amou e amou-se e voltou mais tarde para construir a vida que projectou para si.

A hora do almoço devolveu-a à rua por algum tempo que fez questão de dedicar si. Seguiu pelo passeio de telemóvel no ouvido, preparando companhia para uma refeição ligeira. Caminha em linha recta num passeio cheio de curvas que se moviam com ela, contra ela, atrás dela, na sua frente, nos dois lados. Foi por cima de tantas pessoas que algo a cativou numa montra. Pediu licença e sem contar, soube que se cruzou com mais de uma dezena de rostos naqueles poucos metros até chegar ao vidro. Uns sapatos, uma mala, pele luzente, combinação perfeita. Talvez num dia que não aquele. No reflexo da montra viu uma cidade em que a esquerda era a direita e quem virava à direita seguia para a esquerda. A cidade parecia outra e pensou para si o que teria ainda para lhe dar? E a vida?

Seguiu para o seu almoço navegando num mar de gente. Deliciou-se com mais uma refeição e dedos dois de conversa salteados com risos avulsos. Por vezes a vida tinha o sabor do fácil. Do que falara com a amiga já quase nem se lembrava quando subiu no elevador para o seu escritório. Piso 10, 11, 12, 13… Mais de uma dezena de olhos fixavam-se no pequeno visor do elevador. O sol vibrante daquele dia em particular, porque o sol era sempre o mesmo, foi ocasional tema de conversa. Ela ainda o sentia na pele e sorriu. O sol e a luz que douravam a cidade durante quase todo o ano, fora uma das grandes razões porque se apaixonou por aquele sítio. Amou sob a luz e o calor daquele sol e sentiu-se a ser amada sob aquela mesma luz. Partilhar a luz, depois o beijo, a pele, a cama. Felicidade que lhe fugiu sob a mesma luz que nunca deixou de amar.

Foi de novo num autocarro cheio de rostos, segura pelos corpos de gente que não conhecia para não cair, que regressou a casa. Deitou-se na banheira e mergulhou na água quente. O tempo ensinou-a a libertar-se de pensamentos e por momentos pintava uma tela de branco em frente aos seus olhos fechados. Revigorada, ouviu as notícias em frente a uma refeição na companhia do seu fiel copo de vinho tinto. Soube o que se passou no mundo e na sua cidade, quantos milhares de seus vizinhos tinham vivido o que via num rectângulo na parede. Entretinha-se com a sua série favorita do momento quando os olhos ganharam peso.

Foi-se deitar na cama que era grande demais para apenas o seu corpo. Sabia ser feliz, mas porra, numa cidade tão sobrepovoada, era incrível como por vezes se sentia tão só.

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