Um de nós enterrará o outro. Ou eu a ti ou tu a mim. E nesse enterro estará só um, o que morreu. O vazio da ausência da despedida já cá está e ainda estamos ambos vivos, sem estar. Pela altura do enterro, que tempero terá o vazio? Quando um de nós estiver jazido, não fará, esta circunstância, diferença alguma na vida do outro, a não ser, porventura, a estranha sensação de fim ou a constatação de que tudo continua em suspenso – uma infindável história cujo interregno não se materializou num fim que se entendesse.
A morte nem vai ser bem morte, já não estamos na vida um do outro há tempo que baste para que sepultura alguma altere qualquer rotina em particular. Ainda assim, vai soar tudo a estranho. A morte acentuará o que ficou em aberto. Oh, pois bem, as sombras das dúvidas, sim, sim. Não é, para mim, isto grande novidade, o que faz a ausência de conversas ou confrontos nos oportunos momentos, mas não mudará nunca um Homem toda a maré, e já não tenho saliva que valha a pena gastar para revelar o que sempre me pareceu claro.
Nem sei se já te inteiraste de que estava certa: só se consegue arrancar de dentro o que nunca lá esteve. O fugaz é amante da amnésia. O resto, o que crava, é um mundo muito particular. Um fantasma que existe porque engoliu o resto enquanto esteve. Deixa de existir areia, música, flores, vento, sol, sem a memória de que há alguém que pisa os grãos com um fascínio delicioso, cujo corpo engole as melodias, onde a beleza faz inveja às flores e o vento só o é porque lhe levanta o cabelo de madeixas de vida e deixa a descoberto uma insanidade lúcida. O sol são dois olhos brilhantes num rosto que não se apaga da memória porque, quando nos olhou, desmembrou tudo em nós.
A realidade continua a ser o que sempre foi, mas nem sempre se é vida arrebatadora dentro da realidade.
Um de nós enterrará o outro, de longe. Não equaciono sequer que exista a desfaçatez, por parte de quem não me conseguiu encarar em vida, de comparecer a tal momento. Não me preocupa isto, na verdade. A acontecer, será lamentável e isso não é problema que a mim me aflija agora, enquanto tenho possibilidade de me afligir, afinal quem estará no sítio certo é o meu cadáver. Estou em honra, mesmo morta, tal qual se pede. Os vivos que se entendam como bem quiserem, mas todos saberão em que circunstâncias me arregalariam os olhos.
Esta conversa não é que tenha interesse, mas ocorreu-me hoje: quando me enterrares, de longe, e o teu dia permanecer igual, mas já sem as bengalas de ilusão de proximidade de fotografias que vão dando conta da passagem do tempo, qual será a conclusão?
É que amanhã também se enterram corpos.