A cityscape blurred behind a metal mesh fence, showcasing urban architecture and greenery.

Segregação 2.0

Quando em 2 de julho de 1964 a Lei dos Direitos Civis foi promulgada nos EUA, um sinistro capítulo na história norte-americana parecia ter sido encerrado. Negros e brancos já não precisavam de usar espaços públicos separados; os transportes públicos, por exemplo, tinham determinadas pessoas isoladas dos restantes passageiros que nasceram brancos. O sonho de Martin Luther King parecia estar, finalmente, a materializar-se.

Na Europa, os guetos, onde tinham sido confinados os judeus, passaram a ser um evento infeliz (embora frequente) da História europeia. Finalmente, judeus podiam viver onde queriam e praticar a sua religião (ou não) sem medo de serem presos e mortos. O lema liberdade, igualdade e fraternidade, por fim, parecia que se estabeleceria de uma vez por todas e iluminaria as relações sociais.

Toda a prática da segregação, mesmo atualmente, é anacrónica e publicamente condenada. Os exemplos europeu e norte-americano são expressões de algumas dimensões do segregacionismo, mas, infelizmente, outras existem, algumas delas muito próximas de nós.

Em essência, segregação remete para práticas sociais de isolamento e separação impostas a determinados indivíduos ou grupos sociais, entre os quais se incluem as minorias. Estas práticas são impostas e refletem relações desiguais de poder, muitas vezes refletindo um conjunto de estereótipos e preconceitos.

Quem hoje passeie por Lisboa encontrará facilmente duas cidades. Não me refiro à cidade dos turistas e à dos residentes, mas especificamente sobre estes últimos. No final de 2022, já se noticiava que o aumento dos preços das casas empurrara 76 mil pessoas para fora das cidades de Lisboa e Porto. Se uma parte dos novos moradores é estrangeira, uma fatia considerável é de pessoas da classe média alta e classe alta. Os trabalhadores, que são os responsáveis pelo funcionamento da economia, têm de se empurrar cada vez mais para as periferias, muitas vezes em habitações sobrelotadas.

Há uma cidade que só é permitida para quem lá vai trabalhar e uma outra cidade, onde os especuladores competem para ver quem consegue a maior comissão de venda. Existe uma cidade renovada, com excelentes acessibilidades e equipamentos sociais, enfim uma Lisboa colorida e palco da maior oferta turística, vencedora de prémios para quem quer viajar ou investir. 

O processo de gentrificação que temos vindo a assistir é uma das dimensões da nova segregação. É o predomínio de uma aporofobia por parte das classes mais altas, que se assenhora de uma cidade construída e mantida pelos trabalhadores. E a gentrificação não se evidencia somente na expulsão da classe trabalhadora dos centros das cidades, mas a uma concentração de serviços e acessibilidade em determinadas áreas, em detrimento das periferias. 

Se olharmos para os transportes públicos, facilmente nos deparamos com a degradação a que os trabalhadores são submetidos. Para muitas pessoas a luta diária não se inicia quando o trabalho começa. Na maioria das vezes, conseguir um lugar exíguo numa carruagem de comboio é uma verdadeira lotaria, numa viagem que mais faz lembrar o interior de um dos navios negreiros atlânticos devido à sobrelotação. E, após uma jornada de trabalho, regressar ao mesmo cenário matinal onde empurrões, palavrões e até desmaios caraterizam a viagem. Enfim, é a degradação e humilhação a que milhares de pessoas são condenadas por um sistema que as abandonou. E para quem pense que descrevo uma viagem na CP, desafio a tentarem um regresso em hora de ponta na Fertagus.

E nas escolas não é diferente, onde algumas nas periferias apresentam infraestruturas precárias. Quem são os pais que, podendo escolher outra escola, decide por inscrever os filhos numa escola vizinha de um bairro social? Que condições de estudo e futuro têm aqueles que a sociedade condena a uma condição de exclusão social e que se consciencializam de que o jogo está viciado?

Isto não é acidental. Todo o sistema segregacionista é alimentado por relações de poder que têm em vista a normalização dessa mesma desigualdade. Um sistema que privilegia a acumulação de riqueza num grupo cada vez mais restrito de pessoas e grupos económicos, em vez de intervir em favor de quem produz e cria riqueza, sempre procurará afastar do centro as pessoas em desvantagem social.

As práticas segregacionistas explícitas, em certa medida, podem ter diminuído, mas acabaram por evoluir para práticas mais subtis e perversas de segregação, como é disso exemplo a gentrificação. Nalgumas situações, podemos ver uma verdadeira barreira que separa duas zonas distintas e frequentadas por diferentes pessoas; noutras, a barreira é imposta, não apenas geograficamente, mas limitando as condições de vida.

Toda a lógica individualista que o capitalismo nos impinge, sob uma aparência de ilusória igualdade, fundamenta um conjunto de desigualdades que são, em essência, artificiais e possíveis de corrigir socialmente. Não precisamos de competir desenfreadamente para singrar, mas de nos unirmos e organizarmos para criar um sistema social no qual o produto não seja repartido por uma minoria, mas por quem produz. E quando chegarmos a este ponto, a segregação, por fim, será história.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Para que serve a literatura?

Next Post

Do êxito da macroeconomia ao porta moedas vazio

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

A Matéria da Sociedade

O materialismo da sociedade actual dificulta a disseminação dos valores altruístas. O voluntariado incorpora e…

O erro de crescer

Uma nova era germina neste mundo em constante evolução. São assim as sociedades, os indivíduos, a Natureza, a…