Redes (pouco) sociais

“Jean Patrick Assunção”, gestor. A fotografia de perfil apresenta um homem aprumado, cuidadosamente penteado, de cabelo branco. O rato desloca-se sobre o botão azul “responder” e clica. A ligação dos perfis faz-se, e a aplicação desliga-se.

Menos de dez minutos depois aparece a mensagem – “Empresta-se dinheiro com juros de 7% ao mês […], etc.”. Fica o esforço do “Bloquear” ou “Não seguir” como ensinamento, que na realidade não se vai aprender.

No longínquo ano de 1999 um professor apresentou-me um ensaio datado de 1965 intitulado “A cidade não é uma árvore”, escrito por Christopher Alexander, sendo o mesmo apresentado como um artigo destinado a demonstrar a interligação entre todos os sistemas “humanizados” que fazem parte de uma cidade.

De uma forma lata e brilhante, o artigo demonstrava, aplicado à ciência urbanística, que a complexidade inerente ao ser humano se propagava a todos os sistemas com que este tinha contacto, relacionando-os entre si, com o ser humano a ocupar o espaço central, e que, estranhamente, aparentemente quanto mais intrincadas e profundas fossem as relações entre os sistemas envolvidos, maior probabilidade o sistema tinha de ser bem-sucedido.

A árvore, ou mais especificamente o seu simbolismo, serve como exemplo para o contrário, dado que cada folha está ligada a um ramo, e que este apenas também está ligado a outro ramo, assim sucessivamente até ao tronco principal, sendo que cada elemento apenas conecta com outro de nível superior, nunca se interrelacionando com nada mais.

Sabemos de forma clara que nada funciona realmente de tal forma, mesmo que por vezes façamos questão de o tentar esquecer, ou omitir.

Ora as denominadas “redes sociais”, nas suas múltiplas formas pretendem aparentemente servir este propósito explanado no artigo “A cidade não é uma árvore” de diversificar e exponenciar os contactos humanos, criando maior número de relações entre sistemas-humanos, procurando aparentemente desta forma amplificar o conhecimento disponível.

A questão é que este formato apresenta diversas deficiências estruturais que o impedem de realmente atingir os aparentes objectivos altruístas com que são rotuladas, relacionando-se com a clara inversão dos pressupostos inerentes aos mesmos, efeito secundário da envolvência dos seres humanos num espaço virtual (por inerência fisicamente inexistente) sem as limitações que advém da exposição física, e da regulamentação social que medeia os relacionamentos humanos.

É assim criado um espaço aparentemente ilimitado onde as extremidades do espectro social se podem tocar sem interferência nem regras. E estes são os ingredientes necessários a todo o tipo de extremismos, violências, e abusos possíveis.

Relacionando-se estas propriedades com a intensidade e violência psicológica do ambiente físico em que a maioria dos seres humanos vive, obtém-se um “ponto de fuga” para todas as frustrações humanas, incluindo a solidão, e a intensa necessidade de contacto humano que muitos necessitam, gerando uma relação violenta e abusiva entre as “redes sociais” como um todo e o indivíduo.

Como na maioria das relações violentas e abusivas, é criada uma relação de dependência entre abusador e abusado, roçando o Síndrome de Estocolmo, onde se diluem as discrepâncias sociais para criar um ambiente obsessivo e interdependente – as “redes sociais” precisam de ser escape da realidade física para os indivíduos, abusando deles, e estas precisam deles para a sua sobrevivência básica (o número de utilizadores e de data points trocados dita o sucesso ou insucesso da fórmula).

Encetado este tipo de relacionamento abusivo, a adição, ou “abertura de perfil” a desconhecidos numa “rede social” surge como a normalização de um conjunto de fenómenos, onde se inclui a extremização do fenómeno solidão do indivíduo, associada à conceptualização de que todos os contactos aí presentes possam um dia tornar-se amigos no sentido “físico” ou seja, transcendendo o “lugar” “rede social”.

Diluindo-se as tradicionais regras sociais num espaço não-tradicional, os comportamentos entre indivíduos seguirão os moldes criados originalmente para serem altruístas – diversificar e exponenciar contactos humanos, desregrados e desestruturados de noções de paridade, equidade e liberdade, criando um maior número de relações entre humanos, uma larga maioria destas extremadas e abusivas, amplificando assim comportamentos e atitudes extremistas e abusivas, sem qualquer criação de conteúdos e conhecimento novos.

As “redes sociais” tornam-se assim megafones das frustrações e abusos sofridos no dia-a-dia físico dos indivíduos, amplificando-se ad infinitum.

Como qualquer escape da realidade, a tendência viciante do sistema perpetua-o entre indivíduos que, abusados aqui, vão por sua vez abusar ali, sem qualquer controlo aparente, ou capacidade de converter a situação abusiva a favor de uma catalisação de sentimentos e comportamentos não-extremados.

Confrontamo-nos assim com um dilema conceptual – o que está no cerne do problema? As “redes sociais” megafone ou o modelo sociedade frustrante e abusivo? Qual deles cria o outro, ou os dois potenciam-se mutuamente?

“Aline Maria Petrazzo”, esteticista. A fotografia de perfil apresenta uma senhora nos seus sessentas, com um top vermelho com um decote generoso. O rato desloca-se no ecrã, pousando no botão cinzento “recusar” e clica. Desloca-se para a cruz no canto superior direito e clica. Desloca-se para o botão principal e clica “encerrar”.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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