Rabo de Peixe: do paraíso ao pesadelo viral

Rabo de Peixe é muito mais do que a série televisiva que se destacou este ano nas plataformas de “streaming”. Diria que é, talvez, a história sensação do ano, entre outras histórias que marcam 2023, uma narrativa ficcional que catapultou o cinema português para os escaparates internacionais, bem como uma nova geração de jovens actores e actrizes que começam a dar muito que falar no cinema internacional.

Há muito que conheço a vila piscatória de Rabo de Peixe, na ilha de S. Miguel, Açores e grande parte das paisagens, locais e personagens retratados na série da Netflix, confundem-se com a realidade que ainda persiste de muitas assimetrias e diferenças sócio-culturais nesta vila piscatória, quase “fim do mundo”.

Estive em Rabo de Peixe, quando fiz a minha visita a S. Miguel há alguns anos e deixei-me cativar pelas paisagens verdejantes que se fundem com um céu azul celeste maravilhoso. Nessa altura, nunca pensei que Rabo de Peixe viesse a “internacionalizar-se” desta forma, que a publicidade e os comentários fossem tantos que já ninguém fica indiferente em ir ver a série do momento e poder dar a sua opinião.

Rabo de Peixe é o paradigma da luta sã e honesta dos pescadores locais em conseguirem peixe na faina para vender, terem comida na mesa e os grandes interesses económicos de outras indústrias que se sobrepõem aos interesses locais. A pobreza local, o desvio de uma geração jovem para outros trabalhos que não são de serem pescadores, vendedores de mercado, etc. marcaram-me na minha visão inicial quando estive em Rabo de Peixe.

As desigualdades económicas, a pobreza escancarada a céu aberto, a falta de literacia, a falta de saneamento básico adequado, o amontoar de casas sem preocupações de design estético ou responsabilidade ambiental, as lixeiras sem cuidados e regras impressionaram-me na altura e percebi que S. Miguel era a pérola dos Açores entre outras ilhas, o cartão de visita e Rabo de Peixe, a chamada zona do “fim do mundo”, ou melhor, a zona “problemática”.

A série televisiva voltou a transportar-me para este desafio intelectual de perceber o que é nascer, viver e ser jovem em Rabo de Peixe. Esta vila transita na história abordada, entre o paraíso de uma ilha bela, um postal quase idílico, para uma vila de pesadelo, para uma zona onde já se nasce com o estigma de ser-se um “outsider”, sem oportunidades e que vai enveredar inevitavelmente por caminhos desviantes que não dão lugar a livro de regras ou escrúpulos.

Voltando à história em si, porque é esta que todos vão querer saber, Rabo de Peixe é a história ficcional de quatro amigos que se deparam com uma importante mudança de vida quando uma tonelada de cocaína dá à costa inesperadamente. Trata-se de uma série que se inspirou num género de autêntico thriller, que vai crescendo na intensidade da história com pequenos apontamentos de um humor sarcástico, uma história baseada na esperança, nos sonhos, na amizade, no amor e na relação da população com o mar.

Posso adiantar-vos que fiquei conquistada por esta série, numa maratona de várias horas das quais perdi a conta, para descobrir este fenómeno que tantos amigos, familiares me descreveram, desde o primeiro episódio até ao 7º e último episódio.

Não resisti, assim, em conhecer do início ao fim esta história intensa, provocadora, que nos faz pensar e, sobretudo uma história onde qualquer um de nós, poderia ser protagonista inesperado.

Embora o sotaque micalense açoriano não tenha sido conseguido e retratado pelas personagens, com imensa pena, porque traria, sem dúvida, maior realismo cultural, a única observação que faço de todo o conjunto da série, as paisagens, os pormenores da vila piscatória e o desempenho do todo o elenco de atores é simplesmente formidável.

Esta série foi magnificamente escrita por João Tordo e Hugo Gonçalves e a realização a cargo de Augusto Fraga, um filho da terra Açores e no elenco artístico encontramos novos atores em expansão e reconhecimento: José Condessa, Helena Caldeira, Rodrigo Tomás, André Leitão, Kelly Bailey, Maria João Bastos, Pepê Rapazote, Albano Jerónimo ou Afonso Pimentel, entre outros.

Rabo de Peixe está e vai continuar na boca do mundo, o fenómeno continua e veio confirmar que temos uma indústria cinematográfica com qualidade, que o cinema português é tão bom como qualquer outro cinema europeu. Esta vila, não é apenas a única no nosso país, temos mais vilas e cidades que se assemelham a Rabo de Peixe que deixou de estar no fim do mundo para aparecer no início de qualquer jornal, programa de TV ou destaque jornalístico.

Já está em preparação uma segunda temporada desta série que volta a prometer e muito!

Estão convidados a fazerem uma nova incursão nesta história de tirar o fôlego.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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