Pediram-me que falasse um pouco sobre o que é ser mulher nos dias de hoje.
Primeiro questionei-me se seria assim tão diferente de ser mulher nos dias de ontem, ou de anteontem. Olhando para trás, é fácil ver o que ganhámos: o direito ao voto, a viajar sem marido, a escolher esse marido ou a escolher se de todo queremos ter um. Temos tido várias conquistas. Algumas demoraram um pouco mais a chegar do que aquilo que gostaríamos. Outras ainda nos parecem demasiado distantes, mas estamos a caminho.
Depois quis fazer uma lista de adjetivos: é bom, empoderador, desafiante, desigual ou diferente, incrível, constrangedor, perigoso, bonito. E surgiu uma palavra: contraditório.
Apesar de não ter visto o filme da Barbie, foi impossível não tropeçar no (incrível) monólogo da personagem Gloria (interpretada por America Ferrera). Poucos descreveriam melhor o ser mulher nos dias de hoje. Cito abaixo:
“É literalmente impossível ser uma mulher. És tão bonita e tão inteligente, e mata-me o facto de não achares que és suficientemente boa. Como se tivéssemos sempre que ser extraordinárias, mas de alguma forma estamos sempre a fazer tudo errado.
Tens que ser magra, mas não demasiado. E nunca podes dizer que queres ser magra. Tens que dizer que queres ser saudável, mas também tens que ser magra. Tens que ter dinheiro, mas não podes pedir dinheiro porque é deselegante. Tens que ser uma chefe, mas não podes ser má. Tens que liderar, mas não podes sufocar as ideias das outras pessoas. É suposto adorares ser mãe, mas não fales dos teus filhos o tempo todo. Tens que ser uma mulher de carreira, mas também tens que estar sempre atenta aos outros.
Tens que responder pelo mau comportamento dos homens, o que é uma loucura, mas se apontas isso, és acusada de queixas. É suposto manteres-te bonita para os homens, mas não tão bonita que os tentes demais ou ameaces outras mulheres, porque é suposto fazeres parte da irmandade.
Mas destaca-te sempre e sê sempre grata. Mas nunca te esqueças de que o sistema está viciado. Portanto, encontra uma forma de reconhecer isso, mas também sê sempre grata.
Nunca podes envelhecer, nunca podes ser rude, nunca podes exibir-te, nunca podes ser egoísta, nunca podes cair, nunca podes falhar, nunca podes mostrar medo, nunca podes sair da linha. É demasiado difícil! É demasiado contraditório e ninguém te dá uma medalha ou diz obrigado! E acaba por acontecer que não só estás a fazer tudo errado, como também tudo é culpa tua.
Estou tão cansada de ver a mim mesma e a cada mulher a enredar-se em nós para que as pessoas gostem de nós. E se tudo isso também for verdade para uma boneca que representa as mulheres, então eu nem sei.”
(tradução minha)
Por último, fiz uma reflexão pessoal sobre a um fenómeno feminista a que tenho assistido nas redes sociais, maioritariamente exposto através dos remakes de filmes da minha infância.
Ser mulher nos dias de hoje é também ser sempre do contra. É sentir que não podemos querer o marido, a casa e os filhos, porque isso é demasiado antiquado. É não poder ser mãe a tempo inteiro, porque isso não é uma carreira ambiciosa. Ser mulher nos dias de hoje é ser do contra de tal maneira que os contos de fadas não podem terminar com um beijo do Príncipe Encantado porque isso não traz empoderamento feminino. É ter que querer ser cada vez mais e melhor em todas as áreas da nossa vida. É não querer ter um parceiro porque os homens são todos iguais. É não querer casar pela igreja porque isso tem demasiadas tradições machistas.
É ter que ser tudo preto no branco. É esquecer que as silhuetas também têm áreas cinzentas e que infelizmente não conseguimos definir todas as coisas em HD, ligar os pontos e encerrar cada capítulo de uma forma feliz.
Será na minha opinião uma descrição sobre o ser mulher nos dias de hoje, demasiado redutora e estereotipada. A própria boneca Barbie contribuiu, e muito, para a criação de ideais de beleza com traços quase antinaturais, privilegiando a imagem de uma mulher elegante, loira e de pele branca, e de um estrato social também ele privilegiado.
Um mundo imaginário e cor de rosa, onde tudo parece perfeito será a melhor inspiração para descrever o que é ser mulher nos dias de hoje, ontem ou anteontem?