Kamala A sombra de Biden

Eleita em Novembro de 2020, Kamala Harris é a primeira mulher, a primeira afro-americana e a primeira asiática-americana a ocupar o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos da América. Por um Partido Democrático que gosta de fazer bandeira da “Identity politics” e da imagem da “Girl Boss” e que tem um Presidente eleito que representa o status quo, um homem branco, de idade avançada.

Foi uma forma cínica de angariar mais votos eleitorais. Biden queria os votos que a identidade traz e Kamala, após uma campanha presidencial falhada, agarrou uma oportunidade de poder, um prémio de compensação. Além do facto de ficar na posição natural de suceder a Biden, que pode estar idoso demais para concorrer a um segundo mandato.

Na verdade, a artificialidade da sua apresentação tem repelido o interesse do público, excepto quando decidem gozar com ela. Havia uma altura em que se dizia que o eleitorado americano votava na pessoa com quem preferia beber uma cerveja. Biden tem algum carisma, com todos os seus defeitos. Kamala, com todos os seus “pontos de identidade” na perspectiva eleitoralista democrata, parece alguém bastante falso.

A campanha falhada de Kamala mostra esse cinismo e falsidade, de várias formas. Vamos agora falar de todos os assuntos que despertam a fúria do seu grupo de sicofantas, o “KHive”. O facto desse grupo se intitular uma variação do nome do leal grupo de fãs de Beyoncé, o “Beyhive”, mostra que o culto da imagem é uma maior influência do que qualquer posição política.

Foi essa posição de identidade, de usar o “lugar de fala”, que lhe deu o momento viral de sua campanha presidencial, quando no primeiro debate democrata, confrontou Joe Biden sobre a sua antiga oposição ao “Race-integration busing”, uma medida para integrar jovens negros nas escolas, transportando-os de autocarro para zonas com escolas exclusivamente “caucasianas”, mais financiadas.

“Havia uma menina na Califórnia que fazia parte da segunda turma para integrar as suas escolas públicas. E ela ia de autocarro para a escola todos os dias. E aquela menina era eu.” Claramente foi uma tomada de posição estudada, planeada e com marketing prestes a avançar. Mas embora seus números nas pesquisas tenham subido brevemente após esse debate, a partir daí desceram, até que ela encerrou sua campanha presidencial em Dezembro de 2019.

Poderia apoiar a outra “girl boss”, apelando à sua base de apoio identitário, como Warren ou Tulsi, mas não o fez. Mesmo para apoiar Biden só o fez quando a sua indicação estava assegurada. E aceitou a nomeação para fazer parte do “ticket” com a pessoa que tinha tido essa postura tão negativa para os seus direitos e para a sua oportunidade de avançar na educação.

A sua fama no Senado derivou muito do seu interrogatório contundente ao então procurador-geral Jeff Sessions (sobre a investigação da influência da Rússia) e a Brett Kavanaugh (durante as audiências de confirmação para a Suprema Corte), usando a sua capacidade e experiência como procuradora-geral.

A maior parte das suas duas décadas na vida pública foi vivida como a primeira mulher negra e primeira americana asiática a ser procuradora-geral da Califórnia, cargo que conquistou atacando o seu oponente democrata (muito próximo ideologicamente) como um procurador “ineficiente” que conseguiu baixos índices de condenação em processos criminais.

Uma das decisões mais controversas veio em 2004, quando se recusou a perseguir a condenação a pena de morte contra o homem que assassinou o polícia Isaac Espinoza, em São Francisco. O procurador anterior foi quem utilizou a pena de morte pela última vez em São Francisco. Kamala concorreu a eleições com o compromisso de não buscar a pena de morte. Apesar do que parecia ser uma posição de príncipio, mais tarde, Kamala recusou-se a apoiar duas iniciativas de votação que proibiriam a pena de morte – levantando acusações de oportunismo político e inconsistência na questão controversa.

O seu compromisso com a justiça não a motivou a realizar uma ação civil contra o One West Bank por “má conduta generalizada” ao encerrar casas. Apesar da recomendação do Departamento de Justiça da Califórnia, Kamala recusou-se a processar o banco ou o seu CEO Steven Mnuchin, que foi recentemente secretário do Tesouro de Donald Trump. Novamente, a população mais carenciada não teve justiça.

Basicamente, adapta-se ao que é esperado dela pelo status quo e não avançou qualquer política identitária que pudesse auxiliar mulheres, a população negra ou asiática (indiana).

É acusada de não ter lidado com a brutalidade policial enquanto era procuradora-geral, especialmente depois da recusa a investigar os assassinatos policiais de dois homens negros, em 2014 e 2015. Outro caso relevante do seu percurso foi o de Jamal Trulove, preso por um assassinato que não cometeu, e um tribunal de apelação concluiu que Kamala processou o jovem negro com excesso de zelo, apesar das evidências da sua inocência.

Em 2010, opôs-se firmemente ao uso de marijuana para fins recreativos. Em 2015, na Convenção dos Democratas da Califórnia, ela pediu o fim da proibição federal da marijuana para fins medicinais, mas manteve a oposição ao uso para fins recreativos. Tal só mudou em 2018, como senadora, que ela co-assinou o Marijuana Justice Act do senador Corey Booker.

Mais tarde, em 11 de Fevereiro de 2019, no programa “Breakfast Club” não só Kamala admitiu o seu uso de marijuana de forma recreativa, como fez piadas para adoptar uma posição mais popular. Muito conveniente para a sua campanha presidencial.

A maior mancha na sua campanha presidencial foi outra iniciativa sua como procuradora. Em San Francisco, apoiou uma controversa lei de 2010 que tornava a falta escolar uma contravenção, punindo os pais com uma multa de US$ 2.000 ou até um ano de prisão. A evasão escolar ocorre desproporcionalmente por crianças cujos pais são pobres e menos instruídos, e crianças que não se sentem seguras na escola, que precisam sustentar suas famílias, que têm problemas de saúde mental e física e que estão em situações de vida instáveis. Dada a realidade social, a ideia de multar ou prender pais é cruel.

Numa palestra no Commonwealth Club em 2010, Kamala conta alegremente a história de como enviou um advogado de seu escritório para intimidar uma mãe solteira sem-teto, com dois empregos, cujos filhos faltaram demasiado às aulas. Ela sorri e recolhe risos ao lembrar-se de como instruiu seus subordinados para “parecerem ameaçadores” para que a mãe levasse a sério a ameaça de prisão.

Em outros registos, como em 2013 na Chicago Ideas Week, goza com os “esquerdistas” que usam slogans como “construir escolas, não prisões” e “coloque mais dinheiro na educação, não em prisões”, sugerindo que são ingénuos, e que não entendem a prevenção do crime.

Kamala desculpou-se por criminalizar os pais em uma entrevista ao Pod Save America, em Abril de 2019. “Esta nunca foi a intenção”, disse ela. “Lamento que isso tenha acontecido e o pensamento de que qualquer coisa que eu fiz poderia ter levado a isso.” Tanta aprendizagem e evolução em 2019, que conveniente.

Mas isso é passado. Agora é Vice-Presidente dos Estados Unidos da América. Provavelmente tem um novo currículo, cheio de acções provenientes das novas virtudes, certo?

O seu ponto alto mediático neste novo cargo foi depois de se encontrar com o presidente da Guatemala Alejandro Giammattei, numa entrevista coletiva. Kamala disse que o governo Biden quer “ajudar os guatemaltecos a encontrar esperança em casa”. Ela acrescentou: “Quero ser clara para as pessoas nesta região que estão a pensar fazer essa perigosa jornada para a fronteira Estados Unidos-México: não venha. Não venha”.

É claro que Trump não diria melhor, até porque o Donald é incapaz de dizer mais do que uma frase articulada. Talvez seja caso para se dizer que, por mais que tenha mentido em campanha, podemos tirar o político do cargo de procurador-geral, mas não conseguimos tirar o procurador-geral do político.

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