Desvia a mente entre dois pensamentos e olha para cima. Pareceu-lhe ver um vulto, ouvir uma voz só para ela, mas a janela está abandonada. Sozinha. Solitária. Os cortinados rotos passam entre os vidros partidos e voam com um vento que não existe. A janela está presa numa parede vazia, onde a tinta branca vai caindo e o negro da humidade vai trepando. Ela também é uma janela sozinha na imensidão de um muro, a pedir que a resgatem do que não conhece.
Senta-se num banco de jardim, em frente à janela. Atrás do banco, a oferecer-lhe sombra, uma árvore anciã que parece um homem. Ela não tira os olhos da janela. Não sabe quem observa quem. Abre a mão e olha para aqueles fragmentos que lhe cabem entre os dedos. Fecha a mão e cruza os braços no peito para respirar melhor. Os braços parecem fazer pressão no buraco invisível que existe agora dentro dela, arrancado. A cabeça cheia de nós complicados – os pensamentos são carros descontrolados em curvas escuras e molhadas.
Não procura aquela música que lhe chega de algum lugar impensável. Uma presença que se senta ao seu lado. Ela olha-o, só para ter a certeza de que ela própria existe também. Ele estica-lhe o braço e convida-a para dançar.
“Não posso”, explica ela “tenho o coração partido.”
Abre a mão e mostra-lhe todos os pedacinhos daquele coração minúsculo, diminuído, desinflado. Eram pequenos e complicados. Um coração de vidro temperado. Era difícil conseguir saber onde cada parte encaixava. Ele engoliu em seco quando lhe pareceu, até, que faltavam bocados. Estava habituado a puzzles impossíveis, mas não conseguiu evitar lembrar-se de uma loiça antiga partida, de uma porcelana rachada, de um espelho maldito colado – quase completos, sem realmente o estarem. Reparados, mas diferentes. Nunca nada volta a ser como era. Nunca o rio volta a ser igual no tempo.
Ele parece pensativo. Estratégico. É um capitão em guerra a analisar uma invasão para conseguir a paz. Ela desvia o olhar para o muro. A janela olhava-a sorrateiramente, mas ela apanhou-a. A janela suplica-lhe ajuda e ela devolve a oração. Ela precisa de soluções, desconfia que só ela as consiga arranjar. Desanima-se, sabe que não está em condições de arranjar absolutamente nada, quanto mais soluções. As soluções implicam-se definitivas, resolutivas, e naquele momento ela nem sequer era capaz de se cuidar com pensos rápidos ou garrotes temporários.
À volta deles, a música parece bolas de sabão e a alegria contagiante irrita-a. De onde vem aquele som? Observa o rapaz de novo, e ele está à espera da atenção dela. Com a mão em concha, pede-lhe os pedaços partidos. Diz-lhe: “Vamos fazer um puzzle.”
Ela vê entre a ilusão: “Faltam pedaços.”
“Não faz mal”, garante ele “sou campeão nacional de puzzles incompletos.”
Quando ele sorri para ela, encontra os olhos dela gigantes e gritando entre a esperança e o medo. Ela abre as mãos por cima das dele, alguns pedaços de coração caem ao chão e transformam-se em pó. Ele tenta apanhá-los, procurando o brilho do vidro na relva. Do bolso cai-lhe uma harmónica. Ela fita com força aquele som que estava dentro dele. Dentro dela.
“Perdi-os” a voz triste dele. Apanha a harmónica do chão e volta a guardá-la no bolso.
Ela percebe tudo. Volta a abrir as mãos e a esticá-las na direcção dele. Ele questiona-a com as sobrancelhas, a confiança abalada e a insegurança no olhar. Mas ela já percebeu tudo e sorri-lhe. Ele coloca as mãos em concha de novo, mesmo por baixo das dela. Ela abre os dedos e deixa que os pedaços que sobram dela escorreguem para a pele dele. Respira. Ele fecha as mãos em concha como se fossem um cofre. Olham-se entre a música como se dançassem. E o buraco vazio que têm no peito dói-lhes menos.