A Rua dos Cegos

Foi há muito tempo.

Contou trezentos e vinte e seis passos várias vezes. As lágrimas corriam-lhe em abundância, as dores devoravam-lhe os pés descalços, em sangue. Tinha as mãos cobertas de bolhas, o corpo pesava. O nevoeiro tinha aberto quando, por fim, avistou a Rua dos Cegos. Parou um momento e olhou para trás. O que pesa mais? O medo do que fora o passado ou o medo de enfrentar o futuro? Perder é fácil, mas ter medo de voltar a ganhar corrói qualquer homem. Hesitou, afagou o pendente e voltou a enfrentar a rua escancarada à sua frente.

Com dificuldade, desceu a rua, inclinada e lúbrica. Era uma rua estreita, tornara-se sombria, uma caricatura do que fora outrora. Ventava com violência, o calor abafado a misturar-se com o cheiro pestilento. Os edifícios baixos, muitos deles ao abandono, com janelas sobre compridas e muitos vidros partidos. No final da calçada, uma pequena escada com dois degraus onde se amontoava entulho. Virou à esquerda, junto a um portão que dava para um pátio. Em frente, o Arco da Memória – conta-se que se chamava assim porque um homem rico e excêntrico, morador naquela rua, tornara-se um sem-abrigo por ter sido atraiçoado pela memória, deixando de saber quem era, perdendo o contacto com a realidade e vivendo debaixo do arco até ao final dos seus dias – que anunciava estar perto do nº 141, alguns metros depois, a meio de uma escadaria algo íngreme.

Foi descendo a rua, reconheceu alguns dos lugares. O “Cabaré Royale”, onde o burlesco reinara todas as noites, era agora um aglomerado de pedras onde apenas a parede e a porta de entrada estavam de pé, o néon à entrada do majestoso “Casino Empire” tombado no chão, restaurantes, a casa do Governador que aparentava estar intacta.

Tentou reconhecer os transeuntes que por ele passavam. Desistiu rapidamente. Tinha nojo daquelas pessoas, das suas caras, do seu andar, dos seus gestos. Deu-lhe repugnância, quase física, por muito do que ia encontrando. Reparou num pedinte que tocava viola. Parou, sentou-se num degrau em frente e ficou a ouvir, enquanto apertava o pendente.

“When i get older, losing my hair

Many years from now

Will you still be sending me a Valentine

Birthday greetings, bottle of wine?

If i’d been out till quarter to three

Would you lock the door?

Will you steel need me, will you steel feed me

When i’m sixty-four?”

Aquelas palavras lembravam-lhe a parte mais obscura da sua existência, quando não sabia distinguir os contornos ilusórios da realidade. Lembraram-lhe, principalmente, aquilo que perdera. A vida tornara-o um asceta. A vida. A desculpa foi sempre essa, a vida. A culpa nunca foi das opções que tomara, dos caminhos que cegam quem os segue. Entre outras coisas, levara uma vida apócrifa, faustosa e luxuriante naquela rua. O corpo doía-lhe mas era a alma que mais sofria. Apesar disso, produzia-se agora no seu íntimo algo de desconhecido e novo. Meteu a mão ao bolso e as únicas moedas que trazia entregou-as ao pedinte.

Chegado ao n.º 141, deteve-se na entrada. Acariciou o pendente, ganhou coragem. Empurrou a porta devagar como quem procura começar de novo depois de cair, tentando fazer sentido à vida. Havia sinais de destruição, alguns móveis ainda inteiros. Procurou, amargurado, consolo no único lugar onde ele existe: na memória. Avançou para o quarto, ao fundo, onde ainda estavam a cama, um cadeirão muito coçado e um quadro dela, pintado a óleo, por cima da lareira. Lamentou nunca ter esgrimido toda a sua loucura como prova de amor. Lamuriou, sobretudo, não ter conseguido distinguir os homens das sombras, de não descobrir com argúcia a veracidade das coisas que aconteciam diante dos seus olhos.

Cansado, deitou-se na cama. Sentia frio, tapou-se com o veludo que restava dos cortinados. Olhou para o quadro e sussurrou: “Will you steel need me, will you steel feed me when i’m sixty-four?” Disse isto, afagou o pendente, fechou os olhos e adormeceu.

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