Desde as primeiras linhas do prólogo do livro Nós somos refugiadas, Malala Yousafzai destaca a paz.
A paz, diz Malala neste livro publicado em Portugal em setembro do ano de 2019, é um presente. Seria um erro não dar por ela como quem dá por uma preciosidade, por uma dádiva. A paz não toca a todos, a paz não é perene. É o avesso dos escombros, é o avesso dos “cadáveres alinhados no centro da cidade”. A negação da paz não tem (nem deveria de ter) relação sorridente com a imaginação. Quem quer se projetar num mundo privado de paz, nem que seja em sonho-pesadelo? Esse mundo não deve ser visto sequer ao longe.
Leio esse texto bastante objetivo que eu desejei conhecer melhor, a partir da leitura de uma sinopse no Instagram, e ponho-me logo a lembrar da música “Minha alma”, que ouvi pela primeira vez na voz de Maria Rita: “Paz sem voz / não é paz, é medo”. Quanta dificuldade eu senti, e já era mulher adulta, para assimilar com a música (e com a vida concreta) que determinadas situações, como a de risco elevado de morte, de apagamento para o mundo, obrigam a uma tomada de posição enorme. A ameaça à paz é uma delas. Se a paz está em risco, silenciar a voz não é opção. Entre as ruínas não se ignora a voz interna muito menos o próprio grito de alerta, como não se ignora a voz do outro.
Sem dúvida uma voz da paz, Malala conta, no capítulo 3 do seu livro, que ainda adolescente mantinha um blogue. Nele, a certa altura, escreveu: “Sinto-me bastante surpreendida. As escolas já foram fechadas; então porque têm também de ser destruídas?”. A luta pela dominação de um povo à força bruta é feita pela aniquilação da paz, pelo que em outros tempos, mesmo muito distantes de nós, era encomendado pela ordem de “delere”. Andaram os romanos a decretar a destruição, andam grupos e mais grupos, até hoje, a arrasar tudo o que é mais caro. “Delere” nos remete ao comando do teclado do computador, ao “Delete”, portanto, embora a violência que a ordem de guerra contivesse sobreviva de diversas outras formas entre nós.
No Paquistão, os talibãs investiram contra as escolas, contra as famílias e seus animais domésticos, contra as mulheres e contra as crianças, na sua espontaneidade para ocupar o tempo e o espaço a brincar. De regresso a casa depois de uma peregrinação forçada de alguns meses, Malala voltou a estudar, assistiu à reconstrução de mais escolas para além da escola que ela frequentava, mas acabou por perceber que voltaria a “ser deslocada”. Foi alvejada, levada a um hospital fora do seu país, lá acordou com tal percepção, que até a um adulto custa. Valho-me da música de novo, este é o recado que eu retenho: “É pela paz que eu não quero seguir / admitindo”.
Segundo Malala, que por ora deixamos aqui, a paz é também uma questão de sorte. De presente, de voz, de sorte. Reencontrar a paz é algo pelo que um refugiado anseia, algo que ele tem a esperança de fazer. Nem todo refugiado ou deslocado a alcança. Os jornais dão notícia dessa realidade medonha, Malala é dela porta-voz. Enquanto vemos televisão, enquanto abrimos um livro ou outro, enquanto saímos de uma publicação virtual para jogar Paciência ou para repetir ao léu mais um preconceito acerca de um conjunto de pessoas (deslocadas, quem sabe), a paz é tanto negada quanto concedida. Mais negada do que concedida, suponho. Ainda volto a Malala e à voz das refugiadas, escrever não é uma decisão inocente. Ler igualmente não precisa ser uma extensão da maneira distraída de olhar o cenário que nos rodeia. Olhos abertos, ouvidos atentos, há almas que pedem.