Pátria

Este livro levou-me ao tempo da infância e adolescência, quando o terrorismo e a violência, na ausência da loucura vertiginosa da internet e das redes sociais, era vivido e praticado em células organizadas, famílias, investigações morosas e causava feridas que demoravam a sarar.

Lembro-me do choque, talvez um dos primeiros grandes choques de que tenho memória, quando Miguel Angel Blanco foi assassinado às mãos da ETA. Eu tinha 16 anos e se não chorei, ficou em mim a memória de um jovem impressionado, mas também revoltado com aquela execução tão bárbara, gratuita e cobarde.

Pátria mostra-nos vidas comuns num tempo incomum, mas que era o normal das gentes do País Basco nas décadas de 80, 90 e 2000. Gente como nós, com os dramas e alegrias que temperam qualquer vida em qualquer lugar, mas gente ao mesmo tempo tão distante de nós por via desse sentimento de pertença e isolamento a um território, tantas vezes cegando a razão e caindo no fanatismo travestido de ideologia ou de amor à pátria.

Fernando Aramburu vai tecendo as histórias destas pessoas, duas famílias, histórias isoladas como ilhas, mas que formam um todo tão bem urdido, tão completo, profundo, suave na forma, saltitando pela linha do tempo sem nunca perder o equilíbrio nesse fio tão ténue; duro nos sentimentos que nos atira, despindo-nos de romantismos e esperanças vãs. E no entanto, esta obra carrega consigo uma poderosa esperança.

As três semanas que levei desta leitura trouxeram-me dores nos braços (são mais de setecentas páginas), de cada vez que, para chamar o sono, lia dois ou três capítulos na cama (são pequenos), tal como uma impraticabilidade de transporte que perdoamos quando carregamos um livro que nos toma de assalto, e com o qual damos por nós a desejar que ninguém no escritório esteja disponível para almoçar ou sermos nós a recusar ofertas só para engolirmos a comida e podermos sentar-nos tranquilamente e ler por trinta preciosos minutos.

Tantas coisas haveria para desenvolver sobre esta epopeia monumental, épica e profundamente intimista ao mesmo tempo. O retrato de uma época, de uma sociedade, e, terminando como comecei, de gente como nós quando vivíamos sem redes sociais, mais virados para as nossas comunidades, e a televisão ainda era a janela por excelência para o que acontecia lá fora, no mundo.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico.
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