Queria viver num mundo sem excomungados. Queria viver num mundo em que os seres fossem simplesmente humanos. Queria poder entrar em todas as igrejas. Queria, enfim, que todos pudessem ler, falar, ouvir, florescer. São nestas e noutras vontades que Neruda eternizou, Confesso que vivi, um texto sobre as inquietações de um poeta que não escrevia apenas pela estética. A caneta arranhava no papel todas as ansiedades de um diplomata que tinha o dom da escrita, as temáticas que eram, na sua altura proeminentes e são, hoje, passados alguns anos, ainda actuais. É logo nessa noção de estabilidade cronológica entre gerações – a do poeta e a nossa – que descobrimos a relação tão próxima aos seus textos, mesmo aqueles que já foram escritos há muitos anos. Essencialmente porque o ser humano vive de esperança. Esperança de entendimento, esperança de progresso, esperança que tudo corra bem e, como Pablo Neruda escreveu, “Esta esperança é irrevogável”.
Prémio Nobel da literatura em 1971 e, previamente (1945), vencedor do Prémio Nacional de Literatura do Chile, Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basolato, conhecido por Pablo Neruda ainda antes do registo que tornou este nome legalmente como seu, foi um dos mais importantes poetas a nível mundial. Apesar do seu reconhecido e inegável valor literário, a sua poesia foi enriquecida com uma carreira diplomata que acabou por contribuir quase sempre para a temática dos seus textos, especialmente após o período controverso da Guerra Civil espanhola de 1936-39. No seu currículo, constam cargos como cônsul do Chile na Birmânia, Indonésia (Jacarta) e Espanha (Madrid). Representou ainda o Chile, nas mesmas funções, no México e, mais tarde, na capital francesa.
Podemos – avisando de antemão que é uma forma sempre redutora, dado o espólio opulento de Neruda – dividir a sua obra literária em duas fases. A primeira está relacionada com angústia, com amores erráticos, com uma representação da realidade fora dela própria e com poucos pontos de contacto com questões da vida de quem não é poeta. Há até o que podemos chamar de um certo caos, de pensamentos desconexos impossíveis de interpretar com exactidão. Não foram feitos para isso, foram feitos para o poeta chileno desabafar para o mundo. O mundo só precisa de ouvir (ler), não precisa de entender mais do que a apreensão da genialidade de quem escreve. Vinte poemas de amor e uma canção desesperada é, provavelmente, o melhor exemplo de algumas características supra-mencionadas, mas existem mais: livros, textos ou breves citações.
Dois amantes felizes não têm fim nem morte, nascem e morrem tanta vez enquanto vivem, são eternos como é a natureza.
A segunda fase é, então, quando nos chega a escrita política. A poesia deixa de ser desconexa para começar a defender ideias sociais e palpáveis no sentido mais cínico do termo, sendo, neste caso, muito ligadas à ideologia do comunismo. No livro Espanha no Coração, Neruda apresenta-se como um escritor que quer propagar os seus desígnios, é um escritor preocupado socialmente e não hermeticamente. Provavelmente perdemos alguns hinos ao amor e à dor incessante da condição humana dos afectos, mas ganhámos algo mais parco na nossa história, obtivemos um activista que tem na caneta a sua principal arma. Esta segunda fase tem o seu expoente máximo em Canto geral. Um texto magistral, escrito na clandestinidade, enquanto fugia da ordem de prisão do então presidente argentino, Jorge Videla. Neruda foi conseguindo fugir com a ajuda de várias famílias de classes mais baixas, as mesmas a que o autor queria chegar com os seus escritos, as mesmas que o liam como um herói, o seu público predilecto. A sua política com versos de poesia culminou numa candidatura à presidência da República do Chile. A investida não chegaria a ser levada até ao fim e, em vez disso, decidiu apoiar Salvador Allende na contenda.
É por tudo isto e muito mais – muito mais mesmo – que Neruda é o espelho não só do nosso lado artístico, mas também activista. Ele conjugou tudo, dando primazia ao que fazia mais sentido em cada momento. A sua linguagem chegou a todos os que o quiseram ler, desde os maiores intelectuais, até ao proletariado. A obra de Neruda tem mais de 40 livros, escritos entre 1923 e 1973. Não é tarde para começar a colocar a sua leitura em dia. Se este texto não o ajudar, tem ainda o site da Fundação Pablo Neruda para espicaçar o poeta político que há em si.