De repente, descobriu uma caixa com o nome dela escrito, e na letra da avó.
O nome dela?
Olhou para o quarto. Para os lados, para trás. Levantou-se, e sentiu um arrepio, como se soubesse que a avó a observava. E, se bem a conhecia, estaria orgulhosa por ser a neta a a limpar-lhe a casa; a avó não gostava nada de intrusos.
Voltou a sentar-se no chão, e abriu a caixa. A caixa, teve de se convencer, que agora era sua. Encontrou envelopes com cartas, fotografias, conchas e pedras. Os bens mais preciosos da avó, que ela sempre lhe tinha prometido mostrar, mas que com a falta de memória e de tempo que agora cada uma delas tinha, sempre ficara para “mais tarde”, até o tempo se esgotar.
Cheirou as cartas velhas – adorava o cheiro do papel! – e leu-as. Eram do avô, que tinha estado na guerra. Era um testemunho do amor deles. Devorou-as em poucas horas, com os olhos molhados de felicidade, e o coração ansiando viver algo remotamente parecido, de tão perfeito que lhe parecia ter sido.
Espreitou as fotos. Não, melhor; observou-as bem, estudou-as detalhadamente. Fotografias da família da avó, da sua bisavó com um ar duro, do bisavô sorridente, e dos seus tio-avós. Fotografias do avô muito novo, arranjado; dos dois juntos, sorridentes e jovens. Do casamento, do vestido rendilhado da avó e dos olhos felizes do avô. Também encontrou fotografias do nascimento do pai e dos tios, dos casamentos de cada um deles, e até do nascimento dela e das primas. Uma relíquia familiar! Separou as imagens das várias viagens que pareciam ter feito, das férias, e descobriu algumas meio artísticas que ela não percebia bem nem identificava, mas gostava e reconfortava-a. Lembrava-se que o avô gostava muito de fotografia, a avó orgulhava-se imenso do lado artístico dele. E aqui estava também o legado dele, a descoberto, só para ela.
Mas ela queria partilhar com a família, e já estava a pensar em monopolizar o tempo do pai um desses fins-de-semana para ouvir mais sobre as viagens, a família, a vida deles. Ia recuperar o tempo que nunca teve com a avó. O tempo que parecia não ter encontrado para ela. O tempo que nunca tinha tido tempo de ter.
A noite começava a instalar-se lá fora, e ela decidiu que poderia voltar no dia seguinte. Queria ler tudo de novo, analisar as fotos, mostrá-las aos pais e à irmã mais nova. Além disso, a casa não ia a lado nenhum, e ela até se sentia bem lá, de volta a ela própria. Brincou, no pensamento, com a possibilidade de se mudar para aquela casa.
Com a caixa na mão, trancou a porta da rua e dirigiu-se ao carro.
Antes de entrar, sentiu um cheiro qualquer, não sabia a quê, e a sombra de uma memória parecia roçar-lhe a alma, sem que conseguisse descobrir exactamente a que lembrança pertencia. Só aquela impressão, aquela impressão de que deveria recordar-se de alguma coisa, e não o conseguia fazer. Mas na casa da avó, onde sempre tinha vivido, tudo era possível. Seria o cheiro dos dedos cheios de massa de bolo, na sua infância, no Natal? O perfume sedutor de algum ex-namorado que tinha entrado às escondidas? Os atardeceres de Verão chuvosos mas cheios de esperança, que viam as duas juntas à porta de casa?
Não, nada disso. Não conseguia lembr…
De repente, soube a que é que lhe cheirava: às flores do funeral da avó.
E sabia o que significava.
“Obrigada”, disse para o ar, olhando para a grande casa. Quase que ouviu a voz da avó, “não tens nada que agradecer”.
Sorriu na sua certeza.