O Diário de Anne Frank

Foi do fim que parti para a leitura d’O Diário de Anne Frank. Não o final do livro, mas de uma viagem marcada para Amesterdão e da intenção de visitar a Casa de Anne Frank, nasceu a vontade de conhecer a sua história. Nunca antes o livro havia despertado grande curiosidade, mas uma vez posto em marcha o plano, começou a curiosidade.

Mais do que os fastidiosos e intermináveis museus de arte, os lugares históricos intimistas servem melhor a minha expectativa (os Cabinet War Room é o meu museu favorito até à data). Pedi o livro emprestado à Rita e mal se proporcionou, mergulhei na leitura.

Talvez não tenha sido mau ler este livro em adulto. O seu interesse é inquestionável e ultrapassa sobejamente a qualidade literária do texto. Não que eu esperasse uma obra prima literária mas o realismo, a inocência, a crueza com que uma jovem de treze anos expõe as imperfeições de cada ser que viveu no anexo onde se escondia da perseguição dos nazis dado ser judia, e sobretudo, os sonhos que projectava, fazem deste livro um testemunho poderoso e dramático. Estes, os sonhos, foram o que mais me custou a ler: as suas palavras acerca dos filhos que esperava ter, como tudo iria ser diferente quando saísse do esconderijo, a vida projectada como professora ou escritora… sabemos não estarmos a ler ficção; sabemos também o destino das pessoas (Anne e a irmã, Margot, morreram em Bergen-Belsen de febre Tifóide; a mãe morreu à fome) que vivem neste diário e no anexo de Amesterdão durante dois anos.

A relação difícil com a mãe, sem censuras, o amor e idolatria pelo pai, a difícil convivência de oito pessoas num espaço tão diminuto, o medo, e o horror pelo pouco que sabiam do que lá fora ia acontecendo aos seus… o rádio que trazia as notícias de Londres, do norte de África ou da capitulação da Itália, e o diário onde ia registando tudo nas condições desumanas que lhes calharam, ainda assim infinitamente mais humanas do que as de muitos companheiros de Fé.

Depois, há a inocência de uma menina acabada de fazer treze anos que cresce na sua ingenuidade (no final do texto tem quinze), questionando-se acerca dos crescidos, do sexo, do amor, e a si mesma (as “duas Annes”). Anne Frank torna-se uma personalidade fascinante na descrição que faz de si própria, muitas vezes sem que de tal tenha noção.

Por último, ao contrário da ficção, o quotidiano tem muitos aspectos desinteressantes, a que um escritor experimentado quase sempre poupa o leitor – o balde a transbordar de merda dos habitantes do anexo porque a canalização estava com problemas, por exemplo – mas é esse realismo que nos aproxima das pessoas que ali vivem, gente como nós, mas que se viram votadas à clausura.

Otto Frank, o pai de Anne, foi o único sobrevivente da família. Quão difícil terá sido a sua vida, e quanta nobreza em ter retirado as partes (presentes na edição que li) em que Anne expõe sem filtro o que pensa da mãe? E aqueles que em volta foram ajudando as duas famílias escondidas? Miep, Bep, Mr. Kleiman e Mr. Kugler. Talvez a verdadeira medida do amor ao próximo seja, não a ajuda que dedicamos ao outro, mas o que arriscamos de nós próprios nessa entrega.

Anne Frank queixa-se muito, mas também fala da sorte que tem comparada com a de outros judeus. Faltou-lhe (a quase todos eles) aquela pontinha de sorte para poderem dizer que tinha valido a pena a espera. Para nós valeu, pelo tocante testemunho que Anne deixou. Talvez para eles também tenha valido, ainda que por uns ínfimos dois anos.

O Diário de Anne Frank não é um grande livro: é uma obra monumental. Talvez devêssemos de vez em quando ler qualquer coisa assim para nos lembrarmos da sorte que temos e que tantas vezes esquecemos.

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