O aborto regressou aos ecrãs da televisão enquanto notícia, pois ao que parece há quem deseje a revisão do diploma de despenalização do mesmo e a hipótese deste procedimento ser efetuado em hospitais públicos. Entretanto, no Brasil prepara-se um retrocesso político relativamente a esta questão.
Ideias dos dias de hoje, de regressão a velhos tempos que consideram dignos de memória. Lembro-me de, na minha infância e adolescência, de ser notícia processos-crime por aborto, mulheres levadas à barra do tribunal por fazerem um aborto, ou por o facilitarem.
Ninguém é obrigado a fazer um aborto quando o mesmo é despenalizado. O aborto é uma opção tomada pela mulher em casos extremos. Não acredito que alguém o faça de ânimo leve. Pelo menos, pelos testemunhos que conheço, ninguém o fez de ânimo leve. Nem nos dias de hoje, muito menos antes da despenalização, quando os procedimentos eram perigosos, feitos em qualquer vão de escada, oferecendo risco de vida para a mulher.
Digo opção da mulher sem qualquer pejo por me virem responder que o filho não é só dela. Claramente que não é, mas claramente que não é o pai que passa por todo o processo de gravidez, parto e puerpério, justificativa mais que necessária para que a mulher tenha o direito de fazer a opção sozinha, sem lembrar sequer daqueles pais que depois da criança nascer, dentro ou fora de casa, com relação ou sem relação com a mãe, se divorciam completamente do seu papel de pai da criança.
Curiosamente são as vozes masculinas as principais que se levantam contra a despenalização do aborto, clamando pela moral e bons costumes, como se fossem arautos e conservadores do bem viver, do amor e do apego. Falar é fácil, quando não são eles sequer que irão passar pelo processo – físico e psicológico de fazer um aborto.
Os números falam por si, os abortos voluntários são residuais em Portugal, envergonhando aqueles que em alta voz clamam por um apocalipse de morte de bebés.
Na minha adolescência, o aborto voluntário ainda não era despenalizado. Vivíamos na sombra de um aborto feito sabe-se lá onde. O medo restringia-nos a sexualidade. Falava-se a baixa voz nomes de quem os já tinha feito. Tantas falsas histórias, possivelmente. A proibição, a falta de educação sexual nas escolas e na esmagadora maioria das famílias, a vergonha herdada de tempos passados empurrou muitas meninas para uma maternidade precoce. Felizmente as coisas melhoraram a esse nível. Mas parece que haja quem tenha saudades disso.
Tenho testemunhos de duas mulheres muito próximas de mim. Sabem como era feito o aborto nos anos 50, 60, 70? Introduzia-se na vagina uma agulha de croché para romper a bolsa. Devia fazer-se o mais cedo possível, a possibilidade de risco era menor.
Quem já pariu um bebé, introduziu um DIU ou fez algum tipo de procedimento que necessitasse de abrir o colo do útero sabe as dores que provoca. Imaginem agora introduzir uma agulha, fervida na melhor das hipóteses, com 10cm mal contados, sem espéculo, pela abertura do colo do útero, um músculo forte o suficiente para manter e segurar um bebé durante 40 semanas. Imaginem agora que, na maior parte das vezes, nem se acertava na abertura do colo do útero, não se introduziam agulha nenhuma para romper a bolsa do líquido amniótico, mas sim faziam-se perfurações no útero, provocando hemorragias, e mais tarde infeções que poderiam levar a mulher à morte.
Na época os partos, igualmente perigosos, eram realizados em casa, os abortos na casa de alguém que fazia o trabalho e que rapidamente metia a mulher na rua. Sabia-se a meia voz onde se poderia fazer, custava uma pequena fortuna, o pão da boca de uma família pobre. Uma família que não podia por mais crianças no mundo. Numa altura em que o conhecimento ancestral, milenar, de como fazer estes procedimentos estava totalmente perdido havia séculos, mas a medicina moderna ainda não tinha chegado a estas mulheres. Estavam completamente sozinhas, jogadas à sua sorte.
Não era apenas duas ou três vezes na vida. Era 15, 20 vezes na idade fértil. Os testemunhos que me chegaram eram por volta desses números. “Fiz mais de vinte abortos, todos os verões fazia um aborto.”
Na época, os métodos contracetivos eram proibidos em Portugal. Métodos naturais completamente desconhecidos, maridos despreocupados, raros seriam os casos em que se procederia à abstinência sexual. A mulher tinha de se arranjar por si, por vezes sem apoio do marido ou da família. Outras teriam mais sorte, pelo menos carinho e uma malga de canja que lhes chegava às mãos.
“Parei de fazer abortos quando o meu marido começou a trazer o creme (espermicida) do estrangeiro.” A pomada era trazida escondida nas malas de viagem, era proibida tanto em Espanha como em Portugal. Dentro de um sapato, de uma meia, enrolada em roupa ou até dentro de uma garrafa de bebida, maridos emigrados traziam métodos contracetivos às esposas, libertando-as, e libertando-se também a si, podendo por fim amar sem medo.
Nota: Escrito com o Novo Acordo Ortográfico.
Apesar de ter muitas noções do assunto, nunca é fácil, é um murro no estômago. Obrigada por trazeres este tema e mostrares vários detalhes importantes. Jamais algum homem deveria ter decisão sobre o que acontece no corpo de uma mulher. Grata Olinda!
Ninguém pode decidir sobre o corpo do outro, é simples.
Parabéns pelo artigo! De elevada importância, Olinda.
Obrigada pelas tuas palavras!
Uma crónica tocante e tão real que até doi! Devia ser proibido os homens falarem ou votarem sobre o assunto. Esta é uma realidade que só às mulheres diz respeito pois o corpo é delas. No meu tempo, havia muitas vozes de homens contra, mas quando se viam apertados, recorriam como os outros… só que, como tinham dinheiro, conseguiam comprar o silêncio!
Tal e qual. Eram contra, mas quando precisavam faziam-no…
Verdade nua e crua de outros tempos. Parabéns pelo artigo.
Velhos tempos de que mt gente tem saudade.
Bravo, bravo, bravo!
Obrigada.
Relato amargo e contundente de um tempo a que não queremos voltar, apesar das vozes bafientas que teimam em levantar -se. Obrigada, Olinda.❤️
Eu é que agradeço a leitura e as tuas palavras.