Não Ocupar Espaço

Fui pela primeira vez à Índia.

Esta menção ordinal já aponta para a minha vontade de voltar. Quando visitamos um país, por vezes, iniciamos e encerramos a viagem em si própria, como se o ciclo se desenhasse em completude, no regresso. Não será grande novidade para quem já visitou o subcontinente indiano que esta é uma viagem geográfica, que envolve uma deslocação física, real, de um corpo que se passa a movimentar noutras coordenadas, mas constitui essencialmente uma deslocação de vários parâmetros de entendimento e comportamento que se vão tornando mais claros, ou, até, vão surgindo, após a viagem ‘física’ terminar. É um desenrolar de viagens dentro da viagem. Há muita coisa, em nós, que sai do lugar habitual quando se visita a Índia. É para isso que alguns de nós continuam a viajar. Para sair do lugar.

Agora viajar é bem mais fácil. Há mesmo alguns ortodoxos do ofício (Paul Theroux, Gonçalo Cadilhe – poder-se-á ainda verdadeiramente descobrir alguma coisa?) que em justiça nos enxovalham o orgulho de viajante, fazendo-nos largar esse epíteto tão depressa quanto nos damos conta da facilidade com que, agora, se organiza uma viagem. Organizar é palavra de ordem. Porque temos recursos limitados, o tempo e o dinheiro fazem-nos querer aproveitar as ditas viagens ao máximo, sem desperdiçar nenhum destes recursos, tão escassos. As ferramentas estão disponíveis para isso mesmo. A produtividade extrapolou o perímetro profissional para se instalar em todas as áreas da nossa vida, na forma como preenchemos o tempo que sobra.

Uns optam por agências e agentes que organizam em substituição daquele que viaja e aquele mesmo só tem de ir e estar, ressalvado de várias preocupações logísticas que evidentemente lhe roubam algum tempo. Tempo é dinheiro. Os dois são recursos. Não se desperdiçam recursos, nesta instalada demanda de eficiência. Outros, seja pela sua combinação de recursos em caixa, seja por um levantado prazer em ‘organizar’ a viagem, optam por fazê-lo, autónomos, em forma de antecipado planeamento.  Arriscam-se, pois, a subtrair a eficiência do processo, arriscam-se ao prazer e entusiasmo em detrimento da mensura e produtividade, arriscam-se a mergulhar na ilusão impagável de que a viagem já começou sem ainda terem saído do mesmo circunscrito lugar.

Acuso-me. Sucumbo a esse prazer mais vezes do que aquelas que se chegam a consumar. Nem por isso o entusiasmo esmorece. Ilustro de seguida o planeamento da era da eficácia: internet para todo o tipo de pesquisas, blogs de viajantes, vlogs no youtube, apps de reservas de alojamentos, transportes, bares, restaurantes, exposições, museus, um sem fim de actividades surpreendentes, conversores de moedas, Revolut, tradutores automáticos. Ah! Claro, os reviews. Há os livros, mas esses não entram no plano de acção atendendo ao seu quociente pouco mensurável, nem sempre imediato e, por isso, causa de imoderado prazer.

Como seria viajar antes? Como seria chegar a uma estação de comboios, ver os écrans escritos em Devanagari, dirigir-se a um funcionário que não fala o inglês adjectivado de universal, não ter uma app que explica o código complexo que decifra os lugares e as carruagens no lotado comboio, nem mesmo uma app de reserva de taxis ou tuk tuks caso a coisa corra mal? Como actuar na ausência de um google maps para ver os hotéis nas redondezas? Como seria viajar antes? Quanto dos recursos se desperdiçavam? Quanto se poderia então encontrar naquilo que não se pode medir?

Cada vez mais podemos beneficiar da acessibilidade da viagem e, virando a moeda ao contrário, tanto mais perdemos a oportunidade de descobrir. Está tudo descoberto, dizem.

Não obstante, se há país que, para nós organizadores ocidentais, pode ainda ser descoberto é a Índia. Os códigos comportamentais, os hábitos, o valor da liberdade, a ideia de respeito pelo próximo, a noção de espaço vital, a dimensão espiritual, o barulho, os cheiros, os quase 1.5 biliões de pessoas – esclarecendo: 1459661130 – talvez mais fácil: 1.459.661.130 (dez dígitos). Requer-se um ponto final parágrafo para assimilação do número. No meu caso demorou.

Vamos enquadrar: o planeta atingiu os 8 biliões de pessoas há relativamente pouco tempo, muito graças à Índia; Portugal tem dez milhões e meio – clarificando: 10.500.000 (oito dígitos). Já adivinham, nada como uma pesquisa nestes prodígios nascidos da internet para escarrapachar os números aqui. Se eu já sabia antes de ir? Já. Mas saber racionalmente não chega. A teoria é só uma parte da equação, que se completa quando nos vemos no local geográfico que reúne esta quantidade de humanos sob a grinalda da nacionalidade. Aí é-nos dada a oportunidade de sentir, de finalmente perceber do que estamos a falar quando dizemos ‘muita gente’. E essa grandeza, deduza-se, tem implicações em tudo, em todo o lado, a toda a hora, a cada instante.

Na Índia, aprendemos a não ocupar espaço. Na Índia, o sentido de individualidade que tanto prezamos dilui-se no todo, independente do nosso veredicto. Estamos aqui habituados a vociferar as nossas vontades com ímpeto e assertividade. Na Índia, há que suavizar o tom e esperar pela nossa vez; ser mais um justaposto àquele bilião e meio é pouco mais que nada. A Vontade do todo parece emergir ignorando as vontades individuais. Deste calar passageiro da nossa voz despertam várias, frutíferas, viagens. Sem guias ou apps.

Ainda se pode descobrir muito, se nos deixarmos sair do lugar.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

A arte que cura: um refúgio essencial para a alma!

Next Post

Solidão, a Morte Anunciada

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

O peso da Alma

Manaus, Natal de 2017. A minha mochila e eu acomodamo-nos no segundo convés do Dona Maria, com a intenção de…