Morte organizada

A noite foi de insónia. Passo a passo, fui esquecendo a dormida e as necessidades que embala.

Se eu morrer amanhã de manhã, tive pelo menos tempo de ir com os pensamentos arrumados. Deve ser raro o Homem que vá com isto feito. Uns porque não previam a ida, outros porque, se lhes coube a decisão, o princípio é o da desarrumação. Eu estou com esta vantagem nas mãos: a possibilidade da morte na consciência e a ternura que isto me oferece de deixar tudo nos conformes. É como fazer a mochila para a mais inquietante viagem.

Se é para o fazer, então que se o faça bem feito. Convém começar pelo início, em texto corrido sem detalhes desnecessários. Arrumar é moldar a massa dispersa em bolas e levá-las ao forno. Pote de biscoitos como resultado. É uma boa forma de pensar esta noite – o meu pote dos biscoitos. Arrumar o pensamento antes da ida é como fazer uma lista de compras avessa, a lista do que se comprou. Se lhe faltar alguma coisa, só serve o lamento, que nada mais há que se possa fazer.

Constato agora que, tive mais medo do que aquelas que foram as coisas mal ocorridas. Tive, portanto, medo desnecessário. E com isto já não começa a lista pelo início, usemos a passagem para nota de rodapé. A criatividade serve para corrigir o erro, é aprendizagem que se carrega até ao fim.

Ainda não acendi a luz. Vou deixar estar assim, que pelo escuro fantasio o retorno ao útero de uma mãe cujo pior que me ofereceu foi o pai – a cobardia é a pior das catástrofes.

Li umas coisas dignas de confiança e nunca fui capaz de escrever uma que fosse da mesma proporção. Perguntaram-me vezes a mais, o que fazes aqui?! E disseram-me vezes a menos, fez falta que estivesses. Fiz uns assaltos, sem mãos armadas, aos doces. Esqueci-me, porém, de adoçar as bocas que importavam. Chamou-se assim a isto, roubar por roubar. Nunca soube escolher os dias para pôr a roupa a lavar. Só acertei naqueles em que foi tão verão que anulou qualquer margem de erro. São dias de falsa ilusão para os falhados, os dias em que não se falha pela ausência da margem. Existiu sempre, por conta desta falta de jeito, um cheiro a bafio metido em mim. A roupa húmida serve de desculpa para um cheiro que cospe de dentro.

À Vilda, amei-a sempre. Estive, por isso, sempre com o amor dentro, mesmo que ela não tenha isto presente. O tempo escureceu, à noite sobrepôs-se uma noite mais densa quando me amalhei. Deveria ter metido a roupa para dentro, está lá a camisola que mais aprecio. É também justo que o cheiro me acompanhe no enterro. Pela primeira vez escolhi bem o dia para estender a bendita, dado o calendário do óbito. E, talvez, seja isto que a vida entrega: o certo e o errado na dependência do momento oportuno. A vida inteira, desajustado do momento, para estar dentro dele no momento certo.

Se amanhã de manhã eu morrer, foi num instante digno.

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