Que orgulho sentimos (admito que não todos) ao testemunhar acontecimentos marcantes da História? Do desporto à arte, da política à ciência ou até mesmo na tragédia, há eventos que nos marcam e com eles, experimentamos por vezes uma propensão natural para catalogar como “o mais…”, “o melhor…”, “o pior…”, etc. E se alguns destes feitos podem ser mensuráveis (como o record mundial dos 100 metros por exemplo), outros são entregues, por definição, à subjectividade do juízo humano. É nesta categoria que encaixa a minha certeza (que, não passando de uma mera opinião, está aberta a toda a discussão, refutação e inclusive escárnio) de que, na representação, temos a sorte de poder assistir, ano após ano, a estreias de filmes onde actua a melhor actriz de todos os tempos!
É uma sorte, um prazer, um deleite, um ponto mais na classificação das razões – entre as menos importantes, note-se – pelas quais a vida vale a pena, poder ver actuar Meryl Streep sem ser num ciclo retrospectivo ou festival de cinema com sessões dedicadas. Para um amante de cinema, ter consciência de estar a assistir, em tempo real, a acontecimentos históricos (como são as actuações de Streep) é um privilégio que estranho, apesar da subjectividade dos gostos, não ser mais enaltecido.
Apetecia-me socorrer do mais fino vernáculo e gritar em plenos pulmões APROVEITEM C@§#£%O! A MERYL STREEP NÃO VAI DURAR SEMPRE! … mas não o farei pois seria indelicado num texto que se quer sério.
A actividade cinematográfica de Streep começou aos vinte e oito anos numa estreia de luxo em Júlia de Fred Zinnemann, em 1977. O papel (secundário) não passou despercebido e a sua carreira disparou com a participação no melhor filme do ano seguinte, O Caçador de Michael Cimino, e na mini-série de culto, Holocausto. No filme, que lhe daria a primeira nomeação para um óscar entre (até à data) vinte e uma (!), contracenou com o companheiro da altura, o actor John Cazale. Este, que na sua curta carreira participou em cinco filmes marcantes na História do Cinema (O Padrinho (1972), O Vigilante (1974), O Padrinho – Parte II (1974), Um Dia de Cão (1975) e O Caçador (1978)) viria a falecer de cancro pouco depois de terminar este último. Assim que o estúdio soube da sua condição, quis afastá-lo das filmagens. Streep, que permaneceria a seu lado até ao fim, ameaçou desistir se o companheiro fosse despedido. As cenas d’O Caçador com a participação de Cazale foram as primeiras a ser filmadas.
Em 1979 veio a certeza de estarmos perante um caso sério de génio artístico e com ele, a consagração: uma nomeação para um BAFTA pela participação em mais uma obra lendária,
Manhattan de Woody Allen e o óscar de Melhor Actriz Secundária pelo papel de Joanna Kramer em Kramer contra Kramer. O filme viria a recolher os principais óscares nesse ano: na história de um divórcio onde um pai (Dustin Hoffman) se vê forçado a ser finalmente… pai, foi Streep quem brilhou, actuando em não mais de uns dez minutos de filme (a visibilidade da sua participação foi tal que – diz-se – Dustin Hoffman não quis voltar a filmar com ela; outra versão conta que foi Streep a recusar voltar a trabalhar com ele depois de ele lhe bater durante a filmagem para que ela “entrasse na personagem”).
Passando pel’A Amante do Tenente Francês, filme com que, em 1981, iniciaria a sua maratona de nomeações na categoria principal, chegamos, um ano depois, ao filme que é, para mim, o exemplo sublime daquilo que é uma interpretação perfeita e que me fez querer ler o livro de William Styron (algo que ainda não fiz apesar de já ter visto a película há uns quinze anos), A Escolha de Sofia. Sofia, polaca, sobrevivente do holocausto, perde-se numa relação com um judeu de comportamento errático em Nova York do pós-guerra. Com a chegada ao apartamento de um aspirante a escritor (o narrador da história), é-nos dado a conhecer o que ele vai percepcionando acerca dos dois seres que o acolheram, e a fragilidade do ser humano vai sendo desvendada gradualmente, em diferentes níveis.
Diversas são as escolhas que Sofia tem de fazer na vida (qualquer vida é conduzida por uma infinita sucessão de escolhas) mas quando somos confrontados com a verdadeira Escolha de Sofia, a sua vulnerabilidade torna-se, para nós espectadores, não apenas compreensível como motivo de admiração (além de levarmos um violento “murro no estômago”).
Não adorei o filme, quando o vi, mas, não tendo voltado a ele, a sua força foi-me conquistando lentamente. Talvez por, na altura, me custar equacionar que às vezes, encontrar razões para viver mais não é do que tentarmos sobreviver com aquilo que a vida nos dá.
O recato com que Streep protege a vida privada das luzes da ribalta, não constituindo razão para qualificar o maior ou menor mérito do seu trabalho, revelam algo acerca da sua personalidade: alguém que, sabendo movimentar-se bem no mundo mediático, consegue afastar o deslumbramento não expondo em demasia o suporte familiar (que o é tanto mais quanto mais distante está dessa exposição). No entanto, não faz segredo do seu casamento com o escultor Don Gummer, com quem tem quatro filhos.
Se existe um defeito que eu consigo descortinar no seu trabalho, talvez ele esteja no facto de, com o avançar da carreira, os seus filmes terem vindo a perder a força presente nas obras da primeira década (embora seja uma artista cuja qualidade do trabalho não diminui com o passar dos anos), ancorando-se cada vez mais nas suas prestações, secando por vezes a história ou a própria realização. No entanto, este é um mal menor quando comparado com os méritos que possui. E estes nem têm tanto a ver com o número de prémios ou de nomeações, embora uma actriz que é recordista das nomeações em Hollywood e está entre o leque restrito dos seis artistas com três ou mais óscares não seja algo que se possa ignorar.
Aquilo que para mim distingue Meryl Streep de outros colossos é a sua versatilidade: ela não consegue fazer nada mal! Do drama à comédia, de cantora a vilã, de secundária a principal, o trabalho que tem na preparação de cada papel é um exemplo de profissionalismo, mas um profissionalismo conjugado com um enorme talento, algo que nem sempre acontece. Olho para outros grandes artistas que muito tenho admirado nas últimas décadas como Jack Nicholson, Robert de Niro, Glenn Close, Susan Sarandon, Dustin Hoffman ou Jodie Foster e não vejo neles a mesma capacidade de se reinventarem em cada filme ou, por outras palavras, encontro muitas vezes algo comum nos diferentes papéis que representam, o que não acontece com Streep.
Poderia “passear” por Encontro com o Amor (1984 – um remake de Breve Encontro (1946) um dos meus filmes preferidos), África Minha (1985), Um Grito de Coragem (1988), As Pontes de Madison Country (1995 – que filme!), Dúvida (2008) ou Um Quente Agosto (2013 – uma verdadeira masterclass de interpretações) e deter-me em cada um deles (ou noutros que teria que ver) mas seria fastidioso num único texto.
Streep contracenou com quase todos os grandes actores e actrizes da sua geração: Robert de Niro, Shirley MacLaine, Jane Fonda, Dustin Hoffman, Vanessa Redgrave, Clint Eastwood, Phyllip Seymor Hoffman, Julia Roberts, Jeremy Irons, Jason Robards, Robert Redford, Woody Allen, Jack Nicholson, Diane Keaton, Glenn Close, William Hurt, Julianne Moore, Jim Broadbent, Nicole Kidman ou Tom Hanks. É espantoso como, coabitando com todos estes nomes (alguns deles verdadeiras lendas), ela consegue manter uma qualidade e uma constância que me leva a reafirmar, evitando agora a vulgaridade: Aproveitem! A Meryl Sreep não vai durar para sempre! (não tem o mesmo impacto mas pronto: pelo menos não arrisco a censura).
PS: Referi apenas e só os filmes que eu vi com Meryl Streep. A ausência de referência a alguma obra mais emblemática na sua carreira deve-se ao facto de, não a tendo visto, só poder opinar através da crítica. Contudo, a vantagem de escrever sobre alguém com uma carreira tão rica é precisamente esta: permitir cingirmo-nos à matéria que conhecemos e ainda assim esta revelar-se excessiva para o espaço a que nos propusemos ocupar com o texto!