Foi na Páscoa de 2006 que fomos os quatro conhecer Trás-os-Montes, nome que ficou, mas cuja repartição territorial julgo ter sido abandonada – a província de Trás-os-Montes e Alto Douro – ficando somente os distritos. Na altura éramos quatro a viver em Alapraia, pois os meus pais haviam-se divorciado no ano anterior e creio terem sido esses dias os primeiros de lazer a passarmos com o meu pai.
Cerca de um ano antes, a minha mãe tinha regressado à Marinha Grande, tendo os três ficado com o meu pai. Creio ter ido passar uma semana do Verão anterior com a minha mãe, sendo aqueles os primeiros dias de férias com o meu pai, mas não posso precisar.
A ideia partiu dele, pois, tal como eu e as minhas irmãs, não conhecia a província do nordeste do país. Ainda que tenhamos percorrido a auto-estrada até à Guarda (A1 e A23), a partir daí decidimos seguir pelo IP2. Já havia auto-estrada directa (A1, A25, A25 e A4, por exemplo) mas estávamos de férias e resolvemos arriscar o “país real”. Não foram as nove horas de distância como na canção dos Xutos, mas quase. Almoçámos na Guarda, fazendo fé que as palavras ainda significavam o mesmo que quando haviam sido inventadas: Itinerário PRINCIPAL era para mim uma via mais robusta do que um Itinerário COMPLEMENTAR, mas não. Compare-se com o IC2 (antiga Nacional 1) e podemos ver que a estrada por onde bucolicamente nos arrastámos até à capital transmontana é (ou era, há 17 anos), em alguns troços, pouco mais que um caminho de cabras, passando pelo meio de várias terriolas que até no mapa pareciam maiores. Foi nesse percurso que fiquei a saber existirem vários fins-do-mundo, e enquanto subíamos, ia acompanhando com o mapa aberto – Trancoso, Vila Nova de Foz Coa (que se lixem as gravuras, só queremos é chegar), Vila Flor, Alfândega da Fé, Macedo de Cavaleiros, Azibo (onde parámos para ver a albufeira) e Bragança.
Chegámos e tratámos logo de encontrar um sítio para jantar. O António Santos, colega de trabalho do meu pai, encontrava-se lá com dois colegas do Porto, pelo que se juntaram a nós e os sete tratámos de enfardar a primeira iterada de posta mirandesa.
Não me recordo já da sequência, embora tenha uma ideia do que fizemos por esses três ou quatro dias: num fomos visitar o castelo e deambulámos pelo Parque Natural de Montesinho, parando para almoçar em Vinhais, noutro fomos almoçar a Mirandela pois um outro colega do meu pai estava lá com a família (era a terra da mulher), e ficámos a saber da rivalidade com Macedo de Cavaleiros. Ou seria Miranda do Douro? Não sei, tal como já não sei a razão (como Vila Nova de Poiares e Miranda do Corvo passam a vida à bulha para saberem qual das duas é a capital da chanfana, talvez aqui também a alheira seja um tema sensível; ou então estou a inventar, não sei). No último dia andámos por Bragança, onde nos juntámos com um casal amigo do meu pai, o Cristóvão e a Luísa, que soubemos por acaso andarem por aquelas bandas. Foi no dia do décimo oitavo aniversário da minha irmã Joana e almoçámos no Solar Bragançano, um antigo palacete cujo interior assustou o meu pai e o Cristovão, e à medida que os empregados se aproximavam com uma reverência excessiva, ele repetia para a Joana Grandes anos, hã?! Grandes anos! e riamo-nos (ou eu ria-me, pois não iria pagar a refeição). Quando veio o menu, respiraram fundo: era interior e os preços não haviam ainda entrado na indústria porno que forma hoje os cardápios nacionais, com destaque para a capital, onde nalguns casos, beber vinho ou comer sobremesa é o equivalente ao serviço completo ou ao final feliz num bordel ou casa de massagens.
Assim, acabámos por equilibrar aqueles quatro dias transmontanos entre o retiro familiar e a companhia de amigos. Foram dias de descoberta, do país, mas também da família, ou de redescoberta e adaptação a uma nova condição. Não fomos quatro em casa por muito mais tempo (um ano depois eu iria viver para o apartamento que naquele tempo acabara de comprar), mas aqueles dias foram importantes. Só um ano depois do divórcio fizemos férias juntos. Eu já era adulto, mas todos levamos o nosso tempo.
Claro que o cenário de Montesinho ou termos enjoado de posta mirandesa na beira do vómito ajudou a construir histórias e encontrar pontos que nos unissem. Fiquei a saber que Bragança (há dezassete anos) era uma cidade bonita e que o interior merece muito mais respeito do que aquele que lhe dedicamos (hoje muito mais do que então). Fiquei a saber também que Freixo de Espada à Cinta existe mesmo e é em Trás-os-Montes! Fiquei a saber que Guarda e Bragança distam uma da outra para cima de duas travessias do Sahara (para mim o norte era todo próximo). Fiquei a saber que não precisamos de tropeçar constantemente em paisagens deslumbrantes para sentir a alma dos lugares por onde passamos e há muitas métricas para se medir a beleza de um sitio. Fiquei a saber que as crises familiares podem ser ultrapassadas e há marcos que nos ajudam a estabelecer um antes e um depois. E fiquei a saber que é bonito borregar pelas estradinhas do país real, mas no regresso não foi má ideia voar pelas quatro autoestradas numa ligação directa até casa.
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