Há pouco tempo li o fantástico livro “Diplomacia em Tempo de Troika”, do embaixador de Portugal em Praga, República Checa (na altura da Troika, embaixador na Alemanha) Luís de Almeida Sampaio. Vale a pena a leitura porque entrega-nos uma visão sobre as subtilezas e eventos nos bastidores das grandes decisões políticas e económicas que afetaram a Europa, especialmente Portugal, durante os último mandatos de José Sócrates e Pedro Passos Coelho, e ainda inicio da “geringonça”.
Marcar jantares entre altos funcionários e representantes diplomáticos para debater política e os passos a seguir num projeto futuro, reuniões formais em gabinetes, encontros informais numa viagem de carro, tudo é normalíssimo e uma forma de fomentar relações entre decisores, e como consequência, estreitar as relações entre países e até as empresas que neles investem. Muitos destes encontros e assuntos neles falados são segredos de Estado, e só são revelados mais tarde pelos próprios intervenientes ou através de programas de desclassificação de documentos.
Por isto, o que às vezes é reportado na comunicação social não sai completo, e são decisões de redação que acabam por preencher certas lacunas nos artigos. Quando a Chanceler Angela Merkel acabou o seu mandato como líder do Mundo Livre após governar por dezasseis anos (2005-2021), a comunicação social elogiou-a como poucos políticos alguma vez foram elogiados. Mas durante a Troika e a visita de Merkel a Portugal, a imprensa portuguesa caiu em cima da Chenceler sem qualquer misericórdia, apesar da dependência de decisões alemãs para obter apoios. Sabe-se que pela vontade de Merkel, seria preferível Portugal aprovar o Orçamento de Estado a chutar o problema para a Alemanha, que iria trazer problemas para a reeleição da própria Merkel caso o assunto não fosse tratado com pinças.
Faço esta breve memória a um passado marcante do nosso país para tentar ilustrar melhor um evento, que deu origem em um mito ainda hoje no discurso político, principalmente pelas alas radicais da política internacional.
Diz-se que foi prometido a Mikhail Gorbatchev, o último líder da União Soviética, que a NATO não se iria estender a leste até aos países que hoje são considerados pós-soviéticos: entre eles a Letónia, a Lituânia, a Estónia, a Ucrânia e a Geórgia. Os três primeiros fazem parte da NATO, União Europeia, Zona Euro e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico; os últimos dois querem hoje fugir à relação abusiva que têm com a Rússia, juntando-se à NATO e aproximarem-se da UE. Esta afirmação, no contexto em que nos é hoje apresentada, é completamente falsa e usada para justificar o casus belli da Rússia de Vladimir Putin. No contexto histórico é uma afirmação verdadeira, mas que faz sentido apenas nos anos em que o assunto foi discutido.
É verdade que o assunto foi discutido nos bastidores, e o National Security Archive desclassificou documentos que mostram isto, conquanto nenhum tratado foi assinado ou discutido que tenha esta promessa, logo nenhum acordo foi quebrado quando a NATO aceitou novos membros a leste. Além disso seria impossível fazer essa promessa nos moldes que são hoje abordados pelo simples facto que em 1989 jamais se esperava que a União Soviética iria desintegrar-se. Havia na URSS quem previ-se a implosão económica, mas não as consequências dramáticas que testemunhamos.
“Nem o Presidente [Bush] nem eu pretendemos extrair vantagens unilaterais dos processos que estão a ocorrer.” […] “É importante ter garantias de que, se os Estados Unidos mantiverem sua presença na Alemanha dentro da estrutura da NATO, nem um centímetro da atual jurisdição militar da NATO se estenderá para leste.” – James Baker
Outro ponto a lembrar é que os altos oficiais falavam do leste, na prática falavam a leste da Alemanha, isto é a República Democrática Alemã, que após a queda do Muro de Berlim foi reunificada. A célere frase “nem mais um centímetro a Leste” proferida pelo Diplomata e então Secretário de Estado norte-americano James Baker, foi nada mais que uma forma de assegurar ao líder soviético que não iriam ser colocados soldados pertencentes a países da NATO no território da antiga RDA.
Como não estava em causa a desintegração do regime soviético, algo que só virou assunto já bem perto da sua implosão, a promessa de Baker não contemplava os países que hoje estão presentes na NATO. Logo, quando Gorbatchev ouve esta promessa, ele não interpretou da mesma forma que Putin e partidos radicais querem hoje fazer passar em pleno revisionismo histórico. O próprio Gorbatchev admite isto em entrevista para a emissora de televisão pública alemã Zweites Deutsches Fernsehen (ZDF)em 2014, ano em que as tropas Russas anexam ilegalmente a Crimeia e invadem a região do Donbas. O próprio admite a promessa sobre a extensão da NATO como um mito, acusando a imprensa de ter “mão no jogo”. O então Ministro da Defesa Soviético, Marshall Vladimir Jasof admitiu que Gorbatchev nem sequer discutiu com ele o assunto.
A promessa de Baker era apoiada por outros líderes ocidentais. Após a sua controversa promessa, Baker envia a seguinte mensagem ao Chanceler alemão da República Federal Alemã (RFA) Helmut Kohl, “E então eu fiz-lhe [a Gorbatchev] a seguinte pergunta. ‘Você preferiria ver uma Alemanha unida fora da NATO, independente e sem forças dos EUA ou preferiria uma Alemanha unificada ligada à NATO, com garantias de que a jurisdição da NATO não mudaria um centímetro para o leste da sua posição actual?’”
Para Gorbatchev, estender a NATO para os territórios da antiga RDA era inaceitável. Mas a unificação da Alemanha trouxe problemas domésticos a Gorbatchev, e foram declarações de George H. Bush que eventualmente amornaram a temperatura diplomática. Um dos pontos mais importantes do documento de unificação, foi a liberdade de uma Alemanha unificada poder criar ou pertencer à aliança militar que bem entendesse, incluindo, obviamente, a NATO. Algo que Gorbatchev concordou, mas após a repentina queda da União Soviética, as tropas soviéticas retiraram-se gradualmente do território da RDA e dos outros estados satélites da URSS.
Na Rússia este assunto permaneceu contencioso, embora tal promessa, como Putin invoca, nunca tenha existido. A Rússia de hoje está determinada em moldar o futuro com base na versão que Putin ditou do passado. A 9 de Junho de 2022 admitiu que a Ucrânia era uma “colónia”, não um país soberano, ecoando as suas palavras em 2008, na Cimeira da NATO em Bucareste, que a Ucrânia não era um país verdadeiro. Em Junho de 2022, disse aos jornalistas que oficiais do Kremlin “não tinham problemas com a Suécia e Finlândia da mesma forma que temos com a Ucrânia”, isto após as acesas intenções da Suécia e Finlândia juntarem-se à NATO – cuja Finlândia já finalizou esse processo e foi bem-vinda à aliança.
Fica assim claro que o problema não é particularmente com a NATO, é com a disparidade entre a sua [Putin] visão colonialista da Ucrânia e a vontade desta em associar-se a outra entidade ou país que não seja a Rússia. A 7 de Julho de 2022 mostrou-se determinado a lutar contra o último Ucraniano, poucos meses depois de os ter declarado como “irmãos”. Objetivamente desde o fim da Guerra Fria a Rússia nunca teve maior segurança, ao contrário dos séculos anteriores que esta foi invadida e as décadas em que esteve prestes a colidir com forças da NATO na Europa.
O revisionismo encontra simpatizantes em várias longitudes, também porque toca nos ressentimentos anti-europeus e anti-ocidentais. Ao mesmo tempo são mal entendimentos que são projetados por forças determinadas em destruir as instituições por volta da revolta e da força, em vez da reforma. Mal entendimentos que surgem pela diplomacia ser um pau de dois bicos onde são discutidos assuntos sensíveis, e de natureza bastante abrangente, com vários pressupostos, que não estão disponíveis intuitivamente ao eleitor médio ou eleitor com visão de túnel.
[As citações dos diplomatas foram retiradas deste artigo de Alexandre Guerra, que aborda de forma exclusiva e muito mais aprofundada as nuances diplomáticas deste acontecimento, e o qual convido-vos a ler. É importantíssimo para a desmistificação do conflito e vem, na minha opinião, dos melhores comentadores de política internacional em Portugal.]