Mal me quer

“Ou me fazes um broche ou vais já para a rua.” Foi assim que começou aquilo que Mafalda* descreve como a descida do céu ao inferno, na relação com Daniel*. Ela, psicóloga de profissão, prestes a terminar o doutoramento com 31 anos, julgou que nunca passaria pelo que lhe aconteceu.

Teve o trabalho de “desconstrução do príncipe”. Percebeu naquela noite que a pessoa por quem se tinha apaixonado não era a mesma. Quis um final feliz com Daniel, andou eufórica com a relação de tão feliz que se via e construiu a imagem do príncipe perfeito aos seus olhos. “Eu era a mulher que ele queria para si, mas tinha muito medo que eu o magoasse, pois sabia que éramos de mundos muito diferentes”, recorda.

Hoje, consegue perceber que na relação já havia sinais de manipulação por parte de Daniel, de testes constantes à fragilidade de Mafalda. A psicóloga reconhece ainda que o ex-namorado tinha “pouca auto-estima e que jogou com os sentimentos. Era um parasita emocional”.

Eu não sou assim. Se me contassem isso de mim, não acreditava. Senti-me num filme. Os olhos dele em ter gozo de me ver com medo…? Já vi pessoas doentes, mas aqueles olhos de prazer em ver que eu estava assustada ainda ecoam em mim.

Numa noite, após não querer fazer sexo oral ao namorado, o mesmo ameaçou-a: “Ou me fazes um broche ou vais já para a rua.” Mafalda não cedeu. Não o fez mesmo ficando toldada pelo medo. Pelo tom ameaçador e intimador chegou a temer pela sua integridade física.

Seguiram-se três semanas de “passagem da euforia para o abismo”. Chegou mesmo a desculpá-lo pela atitude tomada, porque “ele estava a passar um mau bocado”, e sentiu-se ela culpada, considerando que “apenas me agarrei àquilo que ia dar certo e em que acreditava. Ele fez-me crer nisso também.”

Findas as três semanas de violência emocional e psicológica constante, Mafalda libertou-se da relação para não mais recuar.

Quando questionada sobre aquilo que gostaria de dizer a quem possa estar a passar pelo mesmo, pela criação de imagens que poderão não corresponder ao correcto, acompanhadas de mudanças bruscas de comportamento, diz que “quero, sobretudo, que as mulheres percebam que se constroem imagens de príncipes, porque estamos mais frágeis e agarramo-nos a isso. Depois sai furado e há homens sem auto-estima nenhuma, que são uns inseguros e que lhes dá gozo manipular. Eu fui só 3 semanas, porque parei por aí. Mas há mulheres assim há muito tempo; que sofrem dessa manipulação, dessa queda para abismo. Protejam-se.”

Saiu a ganhar e fortificada desta experiência que podia ter tido um desfecho menos feliz.

De acordo com a Polícia de Segurança Pública (PSP), que disponibiliza um programa especial para vítimas de violência doméstica (onde podem também ser consultados contactos úteis), é imperativo que a vítima não consinta e que “dê o primeiro passo”. Ressalva também que se trata de “um problema transversal, ocorrendo em diferentes contextos, independentemente de factores sociais, económicos, culturais, etários.”

Enumera ainda os tipos de violência que são exercidos e que são passíveis de apresentação de queixa crime:

  • “Maus-tratos físicos (pontapear, esbofetear, atirar coisas)
  • Isolamento social (restrição do contacto com a família e amigos, proibir o acesso ao telefone, negar o acesso aos cuidados de saúde)
  • Intimidação (por acções, por palavras, olhares)
  • Maus-tratos emocionais, verbais e psicológicos (acções ou afirmações que afectam a auto-estima da vítima e o seu sentido de auto-valorização)
  • Ameaças (à integridade física, de prejuízos financeiros)
  • Violência sexual (submeter a vítima a práticas sexuais contra a sua vontade)
  • Controlo económico (negar o acesso ao dinheiro ou a outros recursos básicos, impedir a sua participação no emprego e educação)”

António* é Guarda Nacional Republicano (GNR) numa unidade que lida diariamente com vítimas de violência doméstica, no distrito de Santarém. Está destacado neste local há ano e meio.

Diz não haver uma idade padrão nas vítimas, muito embora “haja uma maior incidência na casa entre os 30 e 55 anos de idade das mulheres.” Grande parte das queixas são já apresentadas pelas próprias vítimas, pedindo intervenção directa da GNR, chamando os mesmos ao local. Do que observa, a maioria das queixas referem-se a “maus-tratos físicos, emocionais, verbais e psicológicos e ameaças”.

Fonte: “Público’, no artigo ‘Violência atingiu uma média de 14 mulheres por dia em 2016’

Apesar do número de mortes de vítimas deste tipo de violência, nenhum dos casos que acompanhou e acompanha terminou com esse desfecho e, não ficando indiferente à desvalorização da vida por parte do agressor, o GNR partilhou a opinião em relação ao que poderia ser feito para diminuir o número de fatalidades. “Para tentar evitar que isso aconteça, a primeira mudança seria em vez de ser a vítima a sair da sua residência, ser o agressor obrigado a deixar a residência, assim como os tribunais deveriam ser mais rápidos a aplicar medidas de protecção à vítima, tais como a Teleassistência e proibições de contacto e aproximação com as vítimas. Aumentar a pena de prisão associada ao crime de violência doméstica, para que não tenhamos tantos casos de pena suspensa e passemos a ter mais casos de prisão efectiva.”

Posição essa partilhada também pela advogada Carla Amaral Fernandes, que crê que “a legislação não salvaguarda convenientemente a mulher em casos de violência doméstica. Começa logo pelas molduras penais serem muito brandas para este tipo de crime e, na maioria das situações, o agressor aguarda o desenrolar do processo e o julgamento em liberdade. A isto acresce que, para além de estar em liberdade, está a partilhar casa com a vítima, mantendo o mesmo domínio de violência sobre ela. A legislação deve ser alterada no sentido de o agressor ser efectivamente afastado da vitima e as molduras penais agravadas, pois é um crime que, para além das marcas físicas, destrói a mulher enquanto pessoa. Não pode ser sempre a vítima a abandonar o seu lar e tudo o que conhece para escapar ao agressor.”

Para a Dr.ª Carla Amaral Fernandes, é igualmente preciso mudar as mentalidades de todos, uma vez que continuamos a julgar que entre marido e mulher não se mete a colher. “Existem decisões de tribunais superiores, muitas delas proferidas por mulheres, que são completamente absurdas, como uma que diz que umas chapadas não são violência doméstica, apertar o pescoço também não, porque a vítima não ficou com sequelas ou que forçar a esposa a sexo oral não é nem violência doméstica, nem violência, porque ela nem gritou e o marido, quando casa, tem a expectativa real de manter sexo com a mulher. A sociedade num todo ainda não está minimamente sensibilizada para esta realidade.”

Cada vez mais, as mulheres perdem a vergonha de apresentar queixa contra o agressor e de pedir ajuda junto de profissionais qualificados. A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) disponibiliza, para consulta, um Guia de Recursos na Área de Violência Doméstica. No referido guia, é-nos possível procurar contactos úteis, como números de telefone de estruturas de apoio à vítima, câmaras municipais ou serviços locais da segurança social. Tudo devidamente dividido por distritos, concelhos e freguesias.

[su_box title=”Outras Histórias de Violência Doméstica” box_color=”#EDBB73″]

Marisa*

Marisa* entristece-se cada vez que relembra a vida que tem sido “muito madrasta” com ela. Nasceu e cresceu num ambiente difícil, por ter pais alcoólicos e toxicodependentes. Acreditou que, em idade adulta, tudo melhoraria, mas não foi o que se concretizou. Esteve anos presa a uma relação abusiva, em que o ciúme e o controlo eram constantes. “Ele tinha ciúmes doentios e usava tudo para me controlar, até ao ponto de me drogar para eu não querer sair.” O namoro terminou numa noite em que foi esmurrada e conseguiu ligar para o 112 a pedir socorro.

Actualmente está numa nova relação, onde se sente amparada, respeitada e acarinhada. Vive com o namorado, os cães e os gatos de ambos.

Catarina*

Filha de um viúvo já com dois outros filhos, Catarina* é fruto de uma relação atribulada entre os pais. Assim que nasceu, colocaram-lhe “o rótulo de a Bastarda. O meu pai nunca me assumiu verdadeiramente como filha”.

Separados os pais, a mãe teve mais duas relações. O terceiro companheiro era alcoólico e batia-lhe, tal como na mãe. “Ela nada fez. Os meus irmãos já adultos, casados, meteram-se e queriam pô-lo fora de casa, mas a minha mãe cedia sempre e ele ficava… até que eles desistiram e eu fiquei entregue a mim mesma.”

Chegada a altura da separação da mãe com o companheiro alcoólico, esta entra em depressão e “passou a bater-me a mim e a atacar-me verbalmente, chamando-me nomes que nenhuma mãe ou pai deveria chamar a um filho.” Assume que chegou a pensar em suicidar-se. Hoje, está feliz ao lado do marido e da filha.

Sónia*

Fome, falta de electricidade e de água, principalmente de afecto, é desta forma que Sónia* relembra grande parte da sua infância. “Comecei a trabalhar com 12 anos, primeiro só nas férias e depois a conciliar com a escola. Fugi de casa aos 14 anos.”

Sente que toda a sua vida foi moldada pelas ausências durante a infância. O pai era alcoólico e batia tanto na mãe de Sónia como nela e nos irmãos. “Saí de casa cedo e, embora tenha feito as pazes com os meus pais e com a minha vida passada, ainda sinto uma certa ‘raivinha’ em relação a tudo o que se passou… especialmente em relação às pessoas que nos rodeavam e nos condenavam e me levaram a ter uma vida isolada e triste, coisa que não entendia, quando era miúda.”

Construiu(-se) a pulso. Após terminar o 12º ano, comprou casa, nunca teve medo de trabalhar no quer que fosse e hoje é altruísta e ajuda sempre tantos quantos consegue.  Considera-se feliz ao lado dos filhos e do marido.

Francisco*

“A minha mãe fugiu de casa comigo aos 7 anos, ficámos sem nada”. Francisco* conta que quase todos os dias o pai batia nele e na mãe. “Às sextas era pior. Havia cintos, isqueiros… nem é bom lembrar. A minha mãe chorava muito.”

As memórias não estão muito presentes, fruto da idade que tinha na altura, mas recorda o dia em que saíram. “Não percebi bem o que aconteceu. Acordámos e não voltámos mais para trás. Saímos só com o que tínhamos vestido, fomos para casa dos meus avós e lá começámos do zero. Até então, toda a minha vida foi a servir de saco de descarrego do meu pai.”

Hoje, já com 37 anos, não sabe do paradeiro dele, nem “sequer se está vivo. Nem quero saber. Não me faz falta e espero que sofra o mesmo que nos fez sofrer.”

Beatriz

“O meu pai tinha um vício diferente. Todas as sextas e sábados, ia para o casino e casas de jogo. Se ganhasse, estava tudo bem; caso perdesse, batia na minha mãe para descarregar a raiva.” Foi assim que Beatriz* cresceu. O pai nunca lhe levantou a mão ou bateu, nem nos seus irmãos. A mãe nunca teve coragem para sair de casa e separar-se, colocando um ponto final em tudo.

Não tem marcas físicas nenhumas ou cicatrizes visíveis, mas sabe que graças a este tipo de comportamento não consegue confiar em quase ninguém, nem ser carinhosa. “É muito difícil que eu consiga demonstrar carinho. A minha mãe sempre esteve preocupada em esconder-nos o que se passava e acabou por descurar das coisas simples como os beijos de boa noite.”  Teve uma adolescência atribulada, sempre apelidada de rebelde e antissocial. Por não ter amigos, entrou em depressão, foi (e é) acompanhada em consultas de psicologia.

Lamenta que assim tenha sido. “Principalmente, porque aos 23 anos ainda não tive nenhum namorado. Não me sinto preparada para isso.”

Saiu de casa assim que pode, logo aos 18 anos, mudou-se para um quarto. Os pais continuam a viver juntos.

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Ainda assim, muitas são as que se arrependem de tê-lo feito ou que optam simplesmente por não dar continuidade ao processo ou por retirar a queixa formal. António identifica três casos que, na sua leitura, são os principais factores para que se verifique esse fenómeno.

“Primeiro, é que foi uma situação isolada e acreditam que não volta a acontecer. Segundo, há queixas a que, embora se deva dar a mesma importância que as outras, são meras discussões que ocorrem entre o casal e que no calor do primeiro é que foi uma situação isolada e acreditam que não volta a acontecer. Em terceiro, há aquelas vítimas que perdoam constantemente o agressor. Pensam que bater é sinal de amor ou uma bofetada de vez em quando nunca fez mal a ninguém. Depois, quando a denuncia é efectuada por terceiros, em pouco ou nada resulta. Isto, porque se a vítima não apresentou queixa, não foi por falta de conhecimento, mas sim por receio de possíveis represálias que pode vir a sofrer. Assim como é frequentemente rotulado, mal visto e criticado pela comunidade sendo um tabu, inclusive até pelos próprios familiares da vítima. O estigma que ainda está muito incutido na sociedade é que é uma vergonha apresentar queixa por violência doméstica.”

A Dr.ª Carla Amaral Fernandes, por seu lado, reconhece outros factores que levam ao arquivamento dos casos. “Tristemente, a maioria das queixas termina arquivada, porque, quando chega a hora de depor, as mulheres remetem-se ao silêncio. A lei concede às mulheres ou unidas de facto a faculdade de não deporem contra o marido ou companheiro e na maioria das vezes, passando a dor e as nódoas negras, estas perdoam, voltam a acreditar na história de que tudo vai ficar bem e não prestam depoimento. Sem o depoimento da vítima, pouca prova a polícia consegue reunir ou pouco se consegue fazer de modo a condenar o criminoso.

Em 2016, foram agredidas em média 14 mulheres por dia. Dá 100 mulheres por semana, 5226 no total do ano. Relatório Anual da APAV

 

Os processos demoram mais de dois anos, quase como a maioria dos processos-crime em Portugal. Infelizmente, tudo demora tempo demais e, apesar de existirem excepções, elas são mesmo isso, apenas excepções. Durante esse período, se não for concedido à mulher o estatuto de vítima, se esta não abandonar toda a sua vida, a sua casa, família, amigos e ter lugar numa casa de abrigo (que também são muito poucas), a mulher não é acompanhada. A verdade é essa. Pode passar ocasionalmente o carro da polícia, mas isso, em rigor, não é nada.”

A nossa legislação, neste crime, pouco protege as vítimas. Apesar das medidas possíveis de ser tomadas, estas podem tornar-se insuficientes. Para o polícia, é essencial passar a “sensibilizar e educar a sociedade e principalmente os mais novos. Penso que as medidas de coacção ao agressor ou de protecção da vítima deviam ser mais céleres e frequentemente aplicadas”, refere a advogada. Apostar em intervenções junto do agressor é também outra medida que, na sua opinião, devia ser tomada de modo a conseguir com isso “prevenir a reincidência.” E, por fim, a formação de maior número de militares envolvidos em processos destes, para que assim se consiga garantir mais e maior eficácia, passando a estar as vítimas mais acompanhadas deste modo.

A Dr.ª Carla Amaral Fernandes concorda ser necessária a formação tanto para os que trabalham nestes casos, como os que relataremos adiante e que são semelhantes aos de Mafalda. “Em nível de legislação, é necessário criar mais polícia especializada em acompanhar estas situações, pois também falta pessoal e sensibilização.” Conclui que “é necessário perder o medo de deter preventivamente quem já agrediu e ameaçou (o que só pode ser feito, se as penas forem agravadas) e internar quem apresente sinais de doença mental ou abuso e dependência de substâncias ilícitas ou não, para que possam ser tratados e evitar estas tragédias.”

A infância perdida no tempo

Andreia* assistiu desde os seus 7 anos a discussões entre os pais. O pai era alcoólico, mas “nunca bateu na minha mãe, felizmente, mas fomos todos violentados psicologicamente, durante anos, até que ele faleceu, vítima do álcool”.

A mãe, tal como muitas, nunca quis deixar o esposo, porque não, pela vergonha que passaria, com medo daquilo que os outros viessem a dizer, e, graças a isso, proibiu todos os filhos de revelarem o inferno que se vivia durante anos dentro de casa. Todos se “mascaravam” de família feliz, aos olhos de quem os via.

O projecto dos pais de Andreia era a construção e abertura de um café. Viviam numa aldeia e conseguiram erguer o café. Isso levou ao consumo exponencial de bebidas alcoólicas por parte do progenitor. “Ele começou a beber, era autoritário, bêbado era horrível”.

Recorda que tem “histórias terríveis. Por exemplo, com uns 12 anos estava a varrer o chão e ele a gritar-me que não era assim, que a vassoura tinha de ir a direito e apanhar dois mosaicos. Com os nervos, eu tremia, a vassoura saía dos quadrados e lá vinha mais um grito. Noutra vez, penso que era mais nova, batia-me enquanto eu lavava a loiça, porque não estava a lavar bem os copos, tinha de rodar melhor, para ficar bem limpo, deixei cair o copo, que se partiu e quase me separou o dedo mindinho do anelar, se me tivessem levado ao hospital tinha levado uns 3 pontos.

E agora perguntas-me: onde está a parte de violentar a mãe? A minha mãe assistia a isto tudo a chorar, mas nem intervinha, nem podia fazer nada.”

Quando começou a namorar, chegou a perder 10 kg duma assentada, devido ao sistema nervoso. O pai “controlava os minutos todos, fazia a vida negra à minha mãe, porque a culpa era dela, eu ‘andava com os cornos no ar’ e a culpa era dela, estávamos educados à maneira dela. Um dia ganhei coragem e perguntei ‘então e onde é que tu estavas, enquanto ela nos educou, a beber uns copos, não foi?’ Obviamente que levei uma tareia, mas fiquei consolada de lhe ter dito o que pensava.”

Os anos foram passando e fizeram dois internamentos compulsivos ao pai, dado que, no mesmo número, o mesmo tentou suicidar-se. Sendo este uma pessoa manipuladora, fez com que os três filhos acreditassem que os culpados de tal decisão replicada seria deles, tal como da esposa. Culpa essa que imediatamente assumiram, tendo conseguido mais tarde entender que a culpa foi sempre das escolhas feitas pelo pai e do efeito do álcool.

Nunca o abandonámos, nem a minha mãe, nem eu, nem os meus irmãos. Estava grávida de 38 semanas, quando o levei ao Hospital de Santa Maria (a cerca de 160 Kms daqui), a uma consulta de desintoxicação de álcool, recusou os tratamentos, faleceu quando a minha filha tinha 2 anos e meio.

João* viu também a sua infância ser desrespeitada e maltratada pelo pai abusivo, marcado pelo álcool. “Eu sou filho de um pai alcoólico e a minha infância e grande parte da minha adolescência foram vividos com o meu pai a agredir física e verbalmente a minha mãe (eu próprio levei ao defendê-la). Tudo o que se vê nas reportagens sobre o tema, foi a minha vida durante muitos anos. Os meus pais nunca se separaram e ainda hoje vivem juntos, com a diferença que eu cresci, fiquei mais forte do que ele e deixei-lhe bastante claro que não voltava a tocar na minha mãe.

Entretanto, há 7 anos, ele teve um AVC que o deixou bastante debilitado, apesar de manter a sua mobilidade (mas dependente… com o mesmo feitio).  O que vivi fez-me perceber que existe uma prisão neste tipo de relação que não é apenas financeira… existe uma prisão mental e emocional de que as mulheres não conseguem fugir. Elas estão presas a um estado de espírito que as consome, as elimina e do qual não se conseguem libertar.”

Isto fez com que construísse uma relação forte com a mãe, durante anos, eram só eles os dois e, graças a isso, João tornou-se o pilar e apoio desta. Ao ponto de, mesmo não coabitando com a mãe, continuar a suportar parte das despesas e responsabilidades para que nada falte à progenitora. “Tenho um grande carinho por ela, por tudo o que me deu e por me ter permitido e incentivado a alcançar todos os meus objectivos. Claro que se me perguntares se compreendo o que a levou a ficar com ele tantos anos, não, não compreendo. Se me perguntares se me agrada, quando ela diz que ficou por causa dos filhos, não, não me agrada minimamente, porque isso não é verdade. As razões, porém, só a ela lhe dizem respeito e terá de ser ela a compreender e não eu… na realidade, em miúdo não percebia que a minha realidade não era normal… que o meu medo do anoitecer (porque era de noite que ele chegava a casa bêbedo e lhe batia) não era normal, ou que só havia uma sandes para jantar dias a fio, porque o meu pai gastava o dinheiro todo na bebida, não era algo normal. Por causa dela, não percebi isto… só quando cheguei à adolescência é que percebi.”

Hoje, com 30 anos, consegue entender que este comportamento agressivo do pai lhe moldou a personalidade.

Eu era um miúdo muito ingénuo e sensível (a minha mãe diz que eu também era muito doce), que acreditou no Pai Natal até aos 10 anos. Porém, quando se vive a realidade que eu vivi e, principalmente, quando chegas à adolescência, é normal isto afectar-te e moldar-te… foi o que aconteceu comigo. Sentia-me muito sozinho, não conseguia lidar com a raiva, a frustração e com a falta de felicidade. Acabei por me fechar um pouco e ‘contar só comigo’ para tudo. E isso é algo que chegou um pouco até aos dias de hoje…

Reconhece que não consegue falar com qualquer pessoa sobre o assunto e que já teve vergonha daquilo a que foi forçado a assistir quase diariamente. Criou um “mecanismo de preservação da minha vida pessoal. Sou muito reservado e protector em vários aspectos da minha vida”.

Em relação à mãe, o maior pesar de João é saber que “ela nunca foi verdadeiramente feliz… 70 anos de vida e nunca foi genuinamente feliz.”

A felicidade mora ao lado

Teresa* à semelhança de Mafalda, é também psicóloga de profissão e lamenta nunca ter sido feliz nos 14 anos de casamento, seguidos a 5 de namoro. Emociona-se ao lembrar que “antes de casar ainda houve quem me avisasse, mas o amor é cego, não é? Não quis ver a realidade e fui em frente sempre pensando que as coisas iriam ser diferentes.”

Contudo, não foram, nem são. Os maus-tratos são constantes e a manipulação faz com que o marido coloque sempre o peso da culpa nela. “Tu é que provocas”, “tu és maluca da cabeça, precisas de um psiquiatra” são algumas das acusações acompanhadas de nomes jocosos, como “cabra, vaca, porca”.

As discussões entre casal são frequentes, mesmo em frente às filhas, assim como as humilhações.

Conscientemente, sabe que não tem qualquer culpa, ao contrário que lhe é feito crer, mas emocionalmente não consegue esconder que a culpa mora consigo todos os dias, em cada momento de tensão. Lamenta que uma das filhas esteja a seguir o mesmo caminho que o pai, devido ao exemplo daquilo a que assiste.

“Aprendi com o tempo a desligar-me de certas coisas, a ser mais independente, a não ligar, mas não é fácil. Sei que, por um lado, seria melhor o divórcio, mas há sempre algo a impedir-me de avançar e o tempo vai passando e passando. Da parte dele, também é certo que não há qualquer sentimento e desconfio mesmo que apenas mantém o casamento, porque precisa da criada para as filhas, já que passa o tempo todo a trabalhar (diz ele), ou vai para noite com amigos, enfim… Põe tudo à frente da família. À medida que o tempo passa, a violência psicológica é cada vez maior. Já não são só palavras feias, é o humilhar constante, o apontar defeitos a tudo (é isto que não está limpo como ele quer, é a roupa que tem uma ruga a mais, é a comida que tem algum defeito). Ou seja, tem sempre de arranjar/inventar algo para me rebaixar e deitar abaixo.“

Recordando o único dia em que a violência ganhou outras proporções, deixando-lhe um olho negro, fruto de um estalo que levou acompanhado por empurrões e arranhões. “Na altura, confrontado com isso, ele disse aos amigos que eu tinha batido numa porta.”

Visivelmente emocionada, mostra-se esperançosa.

Talvez um dia ganhe coragem suficiente e dê o salto, até lá vou tentando pensar cada vez menos no que ele me faz sentir.

Tudo está bem quando acaba bem

Começaram a namorar bem cedo, a Rute* e o actual marido. Ela tinha 13 anos, ele 16. “Éramos amigos como poucos o sabem ser, éramos totalmente dependentes um do outro, um amor tão crescido vivido por dois miúdos. Sensivelmente um ano depois de termos começado a namorar, decidimos perder a virgindade um com o outro. E porque é que eu refiro isto? Porque foi onde algo nele mudou. O meu melhor amigo, o amor da minha vida deixou de me ver de forma igual e começou a entrar numa era de obsessão e controlo.”

Estavam na escola, com a Rute sentada num banco, quando ele lhe deu o primeiro estalo. Ainda hoje não esqueceu. “Limitei-me a sorrir e a perguntar o que se tinha passado para se ter atrasado. Ficou furioso e não sei de onde nem porquê veio o primeiro estalo. Sentiu mais vergonha do que eu e foi para as aulas sem olhar para trás… Eu aproveitei o pátio vazio para ficar a chorar. Só nos vimos dois intervalos depois, mandou um amigo dar-me um recado.”

Recado esse que estava disfarçado de ultimato. Dizia-lhe o amigo que, se a adolescente não quisesse o dobro do que havia recebido instantes antes, devia ir ter imediatamente com o namorado. O amigo, coitado, não sabia ao certo sobre o que estava a dizer, nem ao que se estava a referir.

“Devia tê-lo mandado bugiar, dizer-lhe que o meu pai também tinha meia dúzia daqueles para ele, porque eu lhe ia contar o que se tinha passado. Mas não. Uma onda de medo instalou-se no meu corpo e, quando dei por mim, já tinha atravessado o corredor de cabeça baixa e lágrimas nos olhos. Os seguintes anos de namoro foram vividos assim, de lágrimas nos olhos e um medo aterrador. Medo de nos encontrarmos com alguém que me falasse e ele não gostasse. Se fosse rapaz, era certo e sabido que ia levar mais uma demonstração de ‘afecto’. Se fosse rapariga, levava também, porque ‘eram todas umas putas e eu queria ser igual’.”

O medo levou-a também a usar roupa de que não gostava, para agradar ao namorado ou para tapar as nódoas negras que este lhe marcava. A fechar-se para o mundo e, com isso, a afastar-se de amigos. “Fui criando uma capa de anti-social para desculpar o meu afastamento, tornei-me mestre a disfarçar emoções e a engolir choros, aprendi a mentir para nunca dar a entender aos meus pais.” Mesmo com este comportamento, a relação avançou e nasceu a primeira filha de ambos. Nascimento esse que veio mudar, mais uma vez e para melhor, a vida de Rute.

A dada altura, entendeu que a filha percebia tudo quanto se passava entre os pais e deu por si a pedir-lhe baixinho para que não contasse a ninguém. Ninguém podia saber. Foi um murro no estômago que deu a si mesma. Engoliu em seco.

Não era aquela vida que eu queria para a minha filha. Não era dizer-lhe para ter consciência que o pai batia na mãe e não dizer nada a ninguém. Podia mentir e ser hipócrita com toda a gente, mas não com ela. Que educação é que lhe poderia dar? Que verdade é que lhe poderia transmitir, se as minhas atitudes não coincidiam com as minhas palavras?

Dias mais tarde, respondeu a um empurrão do mesmo modo. Tomou uma atitude, respondeu com a mesma moeda – carregada de medo – e empurrou o marido também. Ele respondeu com uma bofetada e ela uma bofetada lhe deu também. De seguida, “ele agarrou-me pelos cabelos, atirou-me contra a parede, contra os móveis, contra o chão e eu pontapeei-o da forma que consegui. Sentou-me à frente dele e ficámos olhos nos olhos, enquanto uma das mãos dele me puxava o cabelo e a outra me encostava uma faca na garganta. Encorajei-o a cortar-me a garganta, porque só assim me manteria calada. Não ia tolerar mais aquilo e ele viu nos meus olhos que era verdade.”

A partir daí deixou de esconder as marcas. Estava decidida a contar tudo, quando e caso alguém fizesse alguma pergunta sobre as nódoas negras que o agressor lhe marcava. Fez até questão de lho dizer de viva voz.

Passou a enfrentar o companheiro sempre que este a agredia. Até que o medo desapareceu. “Quando dei por mim, o medo já não existia. Era capaz de estar olhos nos olhos, nariz com nariz a dizer o que quer que fosse sem me sentir toda a aninhar com o medo de ele me bater!”

Quem os conhece desde sempre, não conhece a realidade pela qual Rute passou durante anos. O casamento permanece, agora feliz, e nasceu a segunda filha de ambos.

“É um segredo nosso que está bem guardado no passado.  Não temos necessidade de falar nele nem de o relembrar, mas volta e meia faço questão de o fazer para ver a reacção… Tenho a certeza de que nunca se irá repetir, porque como ele mesmo diz ‘eu era resultado de uma educação sem amor, agora sou resultado de uma relação de amor e dedicação’.”

Nunca é tarde para acreditar e recomeçar

Júlia* tem hoje 76 anos. Abandonou o lar há ano e meio, deixando tudo para trás sem nunca se ter arrependido.
Casou cedo, aos 18 anos, e no ano seguinte teve a primeira filha. Mais dez filhos se seguiram.

A neta Leonor*, conta que a avó “toda a vida trabalhou para o marido, sem nunca ter feito descontos, sem direito a férias ou feriados.” Depois do nascimento de cada filho, assim que se conseguia colocar em pé, ia trabalhar.

A avó de Leonor trabalhava no salão de cabeleireiro do marido. Tudo o que era ganho “gastava em noitadas e mulheres. Os filhos passaram fome para ele andar nas boates.”

Durante a gravidez do terceiro filho, “levou uma carga de pancada com um cabo de vassoura que lhe deixou a barriga toda negra dum lado.” Com o crescimento dos filhos mais velhos, estes aconselharam repetida e continuamente a mãe a sair de casa. Coisa que foi recusando e protelando. A vergonha era muita e não queria “ser um peso para os filhos”.

Aos 76 anos, Júlia não vergou mais aos maus-tratos do marido abusivo. Suportou perto de 60 anos de violência, de insultos, de fome e de maus-tratos físicos. Saiu da casa onde moram, de todas as vivências infelizes que teve. Levou o que era dela e deixou tudo para trás. Agora vive com os filhos.

Não fez, nem fará queixa. Continua envergonhada pelo tanto que passou, mas deixa um pedido, com esperança nos olhos e nas palavras:

Libertem-se, não esperem tanto tempo para sair.

Porque é que as mulheres ficam presas mental e espiritualmente aos maridos que lhes batem? Somente elas o sabem. Nenhuma nos contou.

*nome fictício
Nota: todas as imagens utilizadas são apenas representativas e não identificativas das pessoas que nos deram os seus testemunhos
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