Fomos ver o novo filme do comediante Louis C.K. e considerámos importante falar sobre ele, numa altura em que os escândalos sexuais que envolvem o ator estão no centro da polémica em Hollywood.
Talvez seja melhor começarmos por apresentar Louis C.K., que alguns conhecem e outros nem tanto (tenho que admitir que estou mesmo neste segundo grupo, e que o fiquei a conhecer em “Blue Jasmine”). Louis C.K. é um conceituado comediante e ator norte-americano, nascido em 1967. Como ator participou em várias produções, entre elas as mais recentes, como “Blue Jasmine” (Woody Allen, 2013) e “Trumbo” (Jay Roach, 2015). Antes do sucesso a solo, Louis trabalhou como argumentista para diversos programas na televisão como “The Late Show with David Letterman”, “Late Night with Conan O’Brien”, “The Dana Carvey Show”, e “The Chris Rock Show”. O reconhecimento veio com os seus espetáculos de stand-up comedy, que permitiu a criação da série “Louie” (2010 e 2015), e ainda da série online “Horace and Pete” (2016), ambas escritas, realizadas e criadas por si. Louis C.K. também já foi galardoado com 5 Emmy Awards, e “Louie” valeu-lhe duas nomeações para os Golden Globes, na categoria de Melhor Actor de Comédia ou Musical, em 2013 e 2015.
Com a estreia deste “I Love You, Daddy”, não há como negar as acusações tornadas escândalos que envolvem o comediante e que o próprio confirmou serem verdade. Depois do caso Harvey Weinstein, que continua a dar que falar, C.K. foi acusado de assédio sexual por várias mulheres. Duas delas, as comediantes Dana Min Goodman e Julia Wolov, que trabalharam com ele, contaram ao The New York Times que Louis C.K. se masturbou na frente delas. A situação aconteceu em 2002, no quarto do hotel onde o comediante estava hospedado.
O caso foi noticiado a 9 de novembro de 2017 e acabou por trazer problemas para o seu filme “I Love You, Daddy”, rodado e editado em segredo. A estreia do projeto foi cancelada nos EUA, bem como a sua participação no famoso talkshow “The Late Show” com Steven Colbert. Para mais a distribuidora do filme, a Orchard, acabou mesmo por desistir do lançamento da longa-metragem no território americano. Questionou-se igualmente se o LEFFEST – Lisbon & Sintra Film Festival – faria o mesmo, mas tal acabou por não acontecer e fomos assistir ao filme e a sala estava quase lotada. Curioso é ver que se agora todos odeiam o trabalho de Louis C.K., aquando da sua estreia no Festival de Toronto foi muito bem recebido, tornando-se, desde logo, num dos filmes mais célebres do festival canadiano.
Isto não quer dizer que estamos em defesa do ator. É horrível pensar que estes vergonhosos atos ainda acontecem em pleno século XXI. É algo que nos deixa com um nó na barriga e uma questão que não deixámos de pensar durante a projeção do filme. Questionámo-nos enquanto espetadores que somos que ansiam por um julgamento justo a estes predadores sexuais. Por aí, a primeira questão colocamo-la, portanto, a nós próprios, num sentido metafórico e filosófico: “Será que ao assistir a um filme de um pervertido nos tornarmos também pervertidos?”
Aliás, “I Love You, Daddy” tem muito a ver com assédio sexual, mas também tem muito a ver com relações humanas, entre homens e mulheres, entre pais e filhos, e entre colegas de trabalho. É esse o retrato de uma América mais evidente “I Love You, Daddy”. América vista da mesma forma que um cineasta que Louis C.K. tanto admira. O seu filme trata-se, respetivamente, de tributo ao cinema de Woody Allen, ao ser rodado com a película de 35mm e a preto e branco. Ironicamente também Allen foi acusado de abuso infantil, e casou-se com a própria enteada, Soon-Yi Previn, filha da sua ex-namorada, Mia Farrow.
Com “I Love You, Daddy”, Louis C.K. preocupa-se em refletir as intrigas amorosas que também pautam o trabalho de Woody Allen, como se tentasse por vias da sua habitual comédia mordaz, sem qualquer pudor e de autocomiseração, aproximar o trabalho do octogenário aos mais jovens cinéfilos. Rapidamente, o público, aquele no mínimo curioso e intrigado, quererá assistir a “Manhattan” (1979) ou “Maridos e Mulheres” (1992), dois filmes allenianos em que um homem mais velho se apaixona perdidamente por uma adolescente.
A trama de “I Love You, Daddy” acompanha Glen, um argumentista de televisão nova-iorquino, interpretado pelo próprio Louis C.K. (que é portanto realizador, argumentista, produtor e ator principal do projeto) e as várias relações que estabelece com as pessoas, sobretudo mulheres, em seu redor. Uma dessas pessoas é a sua filha China, interpretada por uma já crescida Chloe Grace Moretz. O problema é que China, de 17 anos, apaixona-se Leslie Goodwin (John Malkovich), um homem mais velho, de 68 anos, conceituado realizador de cinema que Glen sempre admirou, mas que se trata de um pervertido, e esteve envolvido em polémica por rumores de abusos sexual a menores.
“I Love You, Daddy” é também a expressão tola e esvaziada de afeto, que China repete incessantemente ao seu pai. Quase inconscientemente, Glen pensa que aquelas palavras soam a gratidão, a reconhecimento, e a amor, quando, na verdade, servem de máscara à maneira mimada como Glen tem educado a filha. Desde as estadias nos melhores hotéis, à aquisição das mais dispendiosas peças de roupa e até viagens no jet privado, China sabe bem como demonstrar gratidão ao seu pai para obter aquilo que tanto quer. Desde logo temos um filme que aspira às construções mais emblemáticas do melodrama, onde a relação que se pensava, e que se dizia instável, entre progenitor e cria, é colocada em debate exatamente pelo surgimento de uma figura invasora, que ironicamente é como um alter-ego deste pai.
Glen é esse homem de meia-idade que aos poucos se vê à beira de um ataque de nervos. É um homem completamente humilhado por todos aqueles em seu redor. As ansiedades, os medos e as fragilidades de Glen dominam nesta situação caricata de que um homem velho não se pode, nem deve, envolver-se com uma miúda, ou mulher mais nova. De facto, “I Love You, Daddy”, quer que o espetador reflita sobre os valores morais quando falamos de uma relação amorosa. Os longos diálogos do argumento mostram-nos exatamente isto. Há uma dificuldade enorme de nos compreendermos uns aos outros, enquanto sujeitos contemporâneos que somos. Será a imprevisibilidade do amor no seu sentido mais provocatório que Louis C.K. nos fala? Vemo-lo descriminado numa conversa entre Glen e Grace Cullen (Rose Byrne, no papel de uma estrela de cinema) em que discutem sobre fantasias e desejos sexuais, que dizem respeito a todos os ser humanos.
Enfim, ao início até que poderemos levar tudo pouco a sério. As piadas grosseiras, embora hilariantes, fazem soar as maiores gargalhadas, mas “I Love You, Daddy” muda de tom à medida que a história se adensa. Temos um retrato sério sobre o que é isto da vida, e sobre o que é isto das relações entre diferentes gerações. O caminho percorrido pelos mais novos não será igual ao dos seus pais, mas também não será como eles querem. Estas crianças do futuro terão que ser adultas por elas próprias, sozinhas. Fica ao critério do espetador decidir se quererá ver o filme. “I Love You, Daddy” chega às salas de cinema amanhã, dia 30 de novembro.