Nestas minhas lides de usar o lápis e papel e ainda com a ajuda de uma caneta, tenho sido bafejada pela sorte, por conhecer pessoas extraordinárias.
Há aqueles que precisam de ajuda para entender as matérias escolares, pelos mais variados motivos, ou os que querem manter os seus conhecimentos muito bem actualizados.
Contudo, o melhor são as surpresas. Pela minha mesa já houve de tudo, gentes que queriam reciclar a mente, as que precisavam de ajuda para coisas prática e as que, após a vida permitir, decidem pensar em si.
A Conceição foi a maior das delícias e tenho-a, para sempre, no meu coração, num lugar de destaque. A sua vida foi grande, uso o pretérito, pois já não lhe posso falar, abriu asas e voou, deixando um legado gigante.
Não sei quantos filhos teve, alguns, mas mencionava, com carinho, “os meus meninos “. Abençoada com vários netos, foi a avó excepcional, a dos abraços e dos beijos, a fofinha que estava disponível para tudo.
Tendo já a família arrumada e os netos criados, decidiu que queria aprender a ler. Não era nova (onde é que a juventude tinha parado?), mas ficou uma menina que se iniciava nas artes de aprender.
Queria ler as escrituras, compreender a mensagem e ver tudo com os seus olhos e muito mais longe. Cheia de vontade, com uma letra bem redondinha, preencheu cadernos com letras e palavras que lhe faziam sentido.
Atenta a tudo, não falhava nada. Era o renascer, sentir o ar de outra forma, abraçar a vida com olhos sentidos e de provir. Foi uma aluna aplicada e maravilhosa, além de divertida e amorosa.
Em lugar de se encerrar em casa, sem meninos para cuidar, viu a oportunidade, uma janela aberta, para ter uma vida reciclada. Outras iriam carpir a ausência, mas ela, este ser tão especial, levantou-se para voltar a nascer.
A Conceição, de voz doce e suave, queria muito, o mundo todo e foi até onde conseguiu. Que pena a vida não lhe ter dado o que merecia, mas, na sua juventude, os hábitos eram outros e as mulheres estavam apagadas.
Tal mentalidade não a impediu de espalhar um imenso amor por onde passou. Envelheceu, a prática que lhe permitiu viver muitos anos e um dia, o escuro com a foice na mão, veio buscá-la para não voltar.
Impossível não sentir este vazio. Um ser de luz que parte deixa um rasto de pó especial, de estrelas que se vaporizam nas memórias de cada um. Legou um pouco de si a todos que a tiveram.
A faca fica espetada nas costas. A Conceição agora é um anjo com asas longas para se recordar. Foi ter com o marido. Volta, assim, a olhar com devoção pelos seus, nas alturas, nas nuvens que, quando a tristeza bate à porta, fazem chorar.
Estas lágrimas são de gratidão pelo tanto que me deu. Sei que não será esquecida e a sua memória reside nos vários que de si descenderam, dos filhos e dos netos que a adoravam com um amor irrepreensível.
Que ventura a minha, por nos termos cruzados e partilhado netos únicos e ainda momentos inesquecíveis. O céu está muito mais rico. Família é só isto, amor em estado gasoso de perfeição.