Nota prévia: não há nada que me prenda mais à cadeira do que um bom thriller (vale para filmes, séries e livros). O Se7en é o meu filme preferido e acho tudo genial nele, começando nos actores e acabando no argumento que, na verdade, para mim, é o ponto alto. Posto isto, a fasquia está sempre muito lá em cima quando o assunto é gente morta e investigações para encontrar culpados.
Vi este “The Little Things” duas vezes, em duas semanas. Porquê? Porque fiquei estarrecida com aquilo tudo.
Portanto, temos um detective de uma cidadezinha que é enviado a Los Angeles para entregar provas no âmbito de um julgamento que vai acontecer. Só que, de repente, vê-se enrolado numa caça ao serial killer. Ora, o homem, apesar de ser de uma terriola pequena, tem um cérebro incrível e torna-se no elemento central daquela investigação. As coisas são-nos dadas à boa maneira dos óptimos thrillers: devagarinho e a virem de onde menos se espera. É tensão a conta-gotas, mas sempre em crescendo.
(Aviso à navegação: vou tentar fazer sem spoilers, mas já sabem… pode acontecer!)
Para mim, o cinema é um hexagrama entre fotografia, cenografia, argumento, banda sonora, representação e realização. Se uma destas pontas arredonda, a qualidade descamba. Adivinhem: temos aqui um caso de seis pontas bem afiadas.
A primeira coisa que me chamou a atenção no filme foi o nunca saber exactamente quando é que ele se passa. Não há uma indicação de data. Zero. A noção de tempo é-nos dada por elementos de cenografia: os carros, o material existente nas esquadras de polícia e o guarda-roupa. Obviamente, isto acontece em imensos filmes mas neste, não sei porquê, este detalhe mexeu comigo.
Depois, a fotografia. Exactamente como a fotografia do final dos anos 70, início dos anos 80. Mais uma vez, um detalhe fabuloso. Os tons alaranjados, uma espécie de granulado, um contraste alto e temos um filme que nos suga lá para dentro, que nos transporta para aqueles anos e não nos deixa sequer pensar em smartphones e modernices.
A banda sonora é outro colosso (estou a escrever este texto enquanto a ouço no Spotify e já estou completamente submersa naquele universo – o mais provável é voltar a ver o filme já hoje, cerca de um mês depois da última visualização). É o som da tensão em crescendo, que nos faz não conseguirmos estar no agora, porque estamos algures ali no final dos anos 70, início dos anos 80, enquanto andamos entre Kern County e Los Angeles.
Portanto, com estes três elementos temos uma obra que, em termos estéticos, está soberba. Mas… e o resto? Um filme, a não ser que seja altamente conceptual, não sobrevive só de fotografia, cenografia e banda sonora, embora, neste caso, estes elementos sejam mais do que suficientes para que este filme mereça duas (ou mais…) horas da vossa vida.
Acontece que The Little Things tem um trio de excelência no elenco. Talvez seja uma combinação improvável mas que funciona. A liderar as hostes, um Denzel Washington de cabelo esbranquiçado, gasto e cansado, a entregar-nos um Joe “Deke” Deacon perfeito enquanto polícia desencantado. Este homem, que já viu coisas demasiado soturnas nos seus anos de trabalho como polícia de uma pequena cidade, arrasta atrás de si um fardo pesado. E é precisamente isso que faz dele o ponto-chave daquela investigação. À parte disto, este é o herói falho: um casamento que não resultou, duas filhas com quem praticamente não tem relação e muita coisa a atormentá-lo interiormente dão-lhe a densidade necessária para o tornar interessantíssimo.
Depois, Rami Malek. Confesso que me é muito difícil não esperar que ele saque do microfone e comece a cantar enquanto um Brian May toca algures ao pé dele (mas, se pensar bem, também me é difícil não o ver com o capuz da sweatshirt enterrado até aos olhos, quanto descodifica código absurdo). Neste filme, ele é Jim Baxter, um detective brilhante de Los Angeles, que se evidencia precisamente por ser incrível. Mas, como todos os génios, há um momento em que soçobra e tudo muda.
Washington e Malek formam uma dupla improvável, que tem tudo para correr mal mas que, estranhamente, funciona. A química entre eles, enquanto actores, é notória e, se eu não soubesse que eles estavam a ser pagos para terem aquela relação, diria que eles, mais do que amigos, são parceiros. Daqueles que guardam os segredos do outro até que venha de lá a mão pesada da Ceifeira e os leve desta para melhor, sabem?
Para finalizar, ou talvez devesse dizer “para início de conversa… e meio… e fim”, Jared Leto. Este senhor não consegue fazer nada abaixo de extraordinário. E rouba a cena de uma forma inacreditável. Todo o acting dele é contranatura. É a calma nos momentos de tensão insuportável, é a mentira descarada mas impossível de provar. A linguagem corporal dele é enervante até ao infinito e dá vontade de entrar por ali adentro e de resolver tudo pelo nosso próprio punho.
A relação destes três é quase um poliamor cinematográfico (não levem isto à letra, por favor, porque não há nada de remotamente romântico ou apaixonado aqui). São três vértices que têm tanto de improvável como de simbiótico. E não consigo mesmo pensar em ninguém que pudesse fazer estes papéis melhor do que eles.
Para finalizar, o argumento. Este puzzle é feito de peças pequeninas, “it’s the little things”, como Deke diz o filme todo. Cada pontinha cola noutra mais adiante e, no final, o quadro é fenomenal. Entre o que é dito e o que fica implícito, entre as coisas que existem e as que faltam, entre os ataques e os remoques, este filme constrói-se com uma solidez fora do normal. Mérito da realização, que pegou nos ingredientes todos e fez um dos bolos mais deliciosos dos últimos tempos. Não é o Se7en, mas podia muito bem ser.