– Ele era tão bonito… – disse a minha avó depois de eu lhe perguntar, sem esperança, se ela sabia quem era James Dean.
– Mas tu sabes quem é? – perguntei com a TV Guia aberta na página que trazia a fotografia do actor.
– Morreu tão novo coitadinho… era tão bonito…
Lembro-me de olhar para a foto e não ver naquela expressão hollywoodesca, carregada da cor artificial com que vinham as fotografias antigas, ao estilo dos cromos dos anos cinquenta, nada de especial.
Eu devia ter uns dez anos e passava as férias na Marinha Grande, em casa da minha avó (em abono da verdade, terei lá passado dois, no máximo três Verões, mas a lente por onde espreitamos a memória passada amplia tudo). Ela, nascida em 1920, tinha trinta e cinco anos e oito dias quando o Porsche 550 Spyder que James Dean dirigia embateu violentamente num Ford Tudor que fazia inversão de marcha na Route 466, tendo o actor morrido no local. O peso das estrelas de cinema junto do público era incomparavelmente maior naquela altura; hoje, a nossa atenção dispersa-se por centenas de canais televisivos, milhões de sites na internet e uma infinidade de estímulos que acabaram com a maioria das referências comuns às gerações que atravessaram o século XX.
Eu via a minha avó como uma consumidora de telenovelas e uma ou outra série que passavam naquele tempo: Uma Casa na Pradaria, Filhos e Filhas, Um Anjo na Terra ou A Vida Continua faziam a televisão que víamos nos intermináveis Verões do final da década de 80, início da década de 90, além da obrigatoriedade semanal com em que torcíamos por Portugal nos Jogos sem Fronteiras. Admirei-me, portanto, com o seu conhecimento acerca de James Dean e puxei por ela:
– Havia filmes muito bonitos naquela altura… O Monte dos Vendavais…
– O Vó, estás a confundir os nomes… Não é O Monte dos Vendavais é E Tudo o Vento Levou! – disse eu julgando saber, naquela altura, alguma coisa de cinema.
– Esse também, E Tudo o Vento Levou, mas O Monte dos Vendavais era com aquele actor muito elegante…
Mais tarde, ao falar com a minha tia acerca d’O Monte dos Vendavais, ela confirmou – Sim senhora: O Monte dos Vendavais e E Tudo o Vento Levou! Eram filmes muito conhecidos. – e calou o gozo que eu preparava para brindar a minha avó.
Foi este o primeiro contacto que tive com James Dean, actor sobre o qual, pouco tempo depois, perguntei ao meu pai para ele me dar a versão masculina acerca do irreverente ícone do Cinema:
– Era um gajo espectacular! Só fez dois ou três filmes e depois estampou-se num acidente de carro. Mas dizia-se que podia vir a ser um actor fora-de-série.
A minha paixão pelo cinema foi ansiando pelo momento em que me cruzaria com tão grande personalidade: a inexistência de internet ou tv por cabo, a limitada oferta de VHS e o facto de ter que gerir muito bem a semanada – dividida entre a poupança e as cassetes para gravar todo o cinema que os canais me ofereciam (quando comprei o leitor de dvd, tinha para mais de quinhentos filmes gravados – abençoada RTP2) – não permitiram que o contacto se desse antes dos quinze ou dezasseis anos, quando o Canal Hollywood entrou no meu lar e, juntamente com as sessões temáticas da RTP2, me mostraram o El Dorado.
A morte de James Dean ajudou a fabricar não só uma estrela instantânea, mas um mito: numa altura em que a fachada e o glamour contavam mais do que os podres que grassavam nos bastidores, uma vida tolhida aos vinte e quatro anos de uma forma tão violenta, de alguém que com tão pouco chegara tão longe e que ainda por cima “era tão bonito” tinha tudo para entrar no imaginário colectivo.
Mas não foi só.
Vi os três filmes com James Dean – Fúria de Viver (1955), O Gigante (1956) e A Leste do Paraíso (1955) – e em todos eles, o actor empresta muito do seu inconformismo aos personagens que encarnou. Parecia que Dean arrastava Jim Stark, Jett Rink e Cal Trask para a sua persona, contagiando todos eles com a irreverência em que a sua curta vida acelerou em vez do oposto: nos três filmes, James Dean foi sempre James Dean antes de ser qualquer um dos personagens que encarnou.
Dean teve a sorte de, nas três películas em que participou com o seu nome creditado, ter trabalhado com três grandes realizadores. Em Fúria de Viver (Rebel Without a Cause), de Nicholas Ray, ele encarna na perfeição o inconformismo de uma geração: eram os anos cinquenta e a juventude encontrava na rebeldia o alerta para se fazer ouvir. Os três personagens principais carregavam o peso do relacionamento falhado com os pais: a fraqueza do pai de Jim Stark (Dean), a ausência do pai de Plato (Sal Mineo) e a distância do pai de Judy (Natalie Wood). É o filme de James Dean que mais me diz.
Vi depois O Gigante (Giant, 1956), um épico de duzentos minutos sobre a ganância na exploração petrolífera no Texas, a luta pelo domínio dos poços da família Benedict e a chegada de Jett Rink, com o abalo que tal presença trouxe. Só um mestre como George Stevens conseguiria segurar a história de Edna Ferber e mantê-la coesa ao longo de tanto tempo, contudo, O Gigante sempre deixou em mim a sensação de que lhe faltava algo. Elizabeth Taylor diria mais tarde, qua quase se apaixonara por Dean, o que quer que isso queira dizer.
Por fim, A Leste do Paraíso (East of Eden, 1955), a adaptação do romance de John Steinbeck pela arte de um dos realizadores mais marcantes de todos os tempos: Elia Kazan. Uma vez mais a luta de gerações com uma versão moderna da história bíblica de Caim e Abel onde dois irmãos lutam pelo amor do pai.
A estreia d’O Gigante foi adiada para 1956 possibilitando a Dean ser nomeado em dois anos consecutivos (a outra nomeação havia-a obtido com A Leste do Paraíso), ambas após a sua morte o que elevou ainda mais a aura que sobre ele Hollywood foi fabricando.
As relações atribuídas a James Dean na sua curta vida, a paixão pelo automobilismo, a rebeldia que ele foi personificando ou a ambiguidade da sua sexualidade (tanto é considerado um símbolo sexual entre as mulheres como foi nomeado o maior ícone gay masculino de todos os tempos (Gay Times Readers’ Awards)) ajudaram a sedimentar o estatuto de Lenda.
Marlon Brando terá dito que Dean não o largava e que era mesmo “um chato”, numa época em que Brando se encontrava no melhor momento da sua carreira (foi nomeado quatro anos consecutivos para Melhor Actor Principal entre 1951 e 1954).
Duas semanas antes de perder a vida na estrada, James Dean fez um triste e irónico anúncio sobre prevenção rodoviária “Eu abusava da velocidade, corria riscos. Hoje sou extremamente cauteloso. Tenham cuidado na estrada. A vida que salvarem pode ser a minha“. Duas horas antes havia sido multado por excesso de velocidade.
James Dean deixou um legado único na História do Cinema. Teve o mérito e a sorte de aparecer apenas em grandes filmes mas dificilmente será considerado um dos melhores de sempre. No entanto, o que ele nos deixa é muito mais do que a marca da qualidade: é o sonho da luta pela liberdade, a irreverência da perseguição daquilo em que se acredita, ainda que não se saiba para onde seguir mas apenas de onde se quer fugir, tal como Jim Stark em Fúria de Viver. São estes personagens que emprestam à vida real tamanha autenticidade que nos deixam uma pena imensa no momento da partida. Isso e a morte prematura (o mesmo aconteceu com John Lennon). Ficamos a pensar o que mais teriam para nos oferecer, ainda que a troco dessa permanência, o estatuto mítico decerto se perderia na espuma dos dias.
Como disse Humphrey Bogart:
Dean morreu bem na hora certa. Ele deixou para trás uma lenda. Se ele tivesse sobrevivido, ele nunca teria conseguido fazer jus à sua publicidade.