Viciantes prazeres solitários

Escrever é muito bom. Há um prazer em juntar letras, ineficazes por si só, em palavras, quase tão ineficazes também, em frases, em crescentes parágrafos ou longos textos que nos traduzam o que trazemos dentro. Mas escrever é muitas vezes um esforço intransponível, quando não encontramos a fórmula certa, e o que lemos e relemos não consegue transmitir, nem de longe nem de perto, aquilo que temos na ideia. Ou somos incapazes dessa tradução, que muitas vezes aquilo que temos de tão óbvio não conseguimos transmitir, ou os outros não entendem o nosso comboio de letras, e a mensagem, a partilha, fica entregue a surdos-mudos.

Escrever é dar o pescoço à guilhotina, por entre as interpretações tantas vezes erráticas, é abrir o peito às balas. Mas quando consegues transpor algo que vais trazendo contigo, que te apanha desprevenido enquanto bebes uma imperial, esperando o teu filho sair do ténis, ou quando a meio do banho te surge a palavra exacta, a frase certa, tijolo, massa, fio de prumo da parede que queres construir, há um prazer imenso, uma sensação de dever cumprido, caso policial resolvido. Para ti próprio, pelo menos, ainda que mais ninguém te perceba.

Contudo, melhor do que escrever é ler. Liberta da avaliação, do esforço de fazer sentido, podemos relaxar e saborear o trabalho do outro. É assim que me sinto quando pego num livro, disponível para ser impressionada, para sonhar, para viajar, conhecer novas gentes, perspectivas e pensares. É um refúgio, onde nos descentramos totalmente do nosso pensar e nos entregamos ao pensamento de outro, vendo pelos seus olhos, sentindo pelos seus sentidos. E se o autor for hábil, talvez cheguemos ao ponto de achar que poderíamos ter sido nós a escrevê-lo, estilos e capacidades à parte, tal a integração que tal perspectiva tem em nós, que a tomamos quase como nossa. Encontramo-nos no outro.

A decisão do que ler é, por si só, um complexo enigma. Podemos ter visto o livro por aí, podemos ter ouvido falar dele, ter-nos sido sugerido por alguém. Podemos querer ler autores referenciados ou arriscar nos novos criadores. Podemos ficar seduzidos pelo título, pelo tema,  pela imagem de capa, ou pelo primeiro parágrafo. Mas um dia, força da atração, tomamos a decisão de partilhar efectivamente com o livro alguns momentos da nossa vida. E ai, como nos relacionamentos, afinal, tudo pode acontecer. Podemos embalar na história, na velocidade curiosa de quem se sente maravilhado, ou podemos achar que não é o que esperávamos, mas ainda assim vamos dando uma oportunidade ao livro, afinal algo de bom deverá ter. Ou deixamo-lo de lado.  Outras vezes insistimos e chegamos à decepção.

Em tempos idos, era para mim quase uma questão de honra não deixar um livro por terminar. Fosse porque talvez não estivesse a perceber completamente o discurso, fosse porque tinha expectativas sobre o mesmo que não queria ver goradas, la me arrastava página após página. Hoje não o faço. Ler é suposto ser um prazer. É um momento meu, que devo usufruir, não sobreviver numa esforçada e ruidosa primeira engrenagem. Penso agora que deve ser a isso que alguém se referiu um dia sobre a segunda metade da vida: não fazer fretes. Não ler o que todos leem. Não ler para ficar bem na fotografia. Ler o que de facto me apetece ler. Sem obrigações, sem receio de catalogações ou desconsiderações.

Abri neste caso, recentemente, uma excepção: Bukowsky. Adoro a poesia dele, mas o único livro de romance que li soube-me a pouco, muito pouco para ser sincera. Tinha uma expectativa tao grande (outro erro), e foi-me tão bem referenciado, que eu presumi que de facto me estaria a escapar o essencial, mas que iria ser beneficiada com uma extraordinária e apoteótica revelação. Lamento, mas a vida autobiográfica de um homem de 50 anos que colecciona encontros sexuais fortuitos, vulgares e básicos com tudo o que mexe, mesclado com álcool, droga e escrita de entremeio, não me seduziu. Ainda mais porque no caso, uma das suas inúmeras parceiras  dá-lhe uma explicação de algumas variações sexuais que um homem dessa idade (e com tanta parceira…) já deveria dominar de olhos fechados. Claro que são visões muito particulares. Comentando isto com um amigo, igualmente cinquentão, tive que ouvir que uma vida sexual rica(?) de um homem dessa idade é tudo o que se quer. Tive que me rir, nada como estarmos em sintonia com o livro, ou o autor.

Estar em sintonia é outra questão. Tenho uma prateleira onde vou colocando as novas aquisições / ofertas, e quando me decido a ler um deles, pego-lhes, leio o início, rodopio as páginas, sinto-lhes a vibração, e decido qual, entre alguns que quero ler, fará mais sentido nesta fase da minha vida. É preciso alguma disponibilidade mental para ler determinados tipos de livro. Com vergonha confesso que fui incapaz de ler os Maias na escola. Com muito embaraço confesso que li os Apontamentos Europa América e acho que não me sai mal, mas não posso dizer que o tenha lido. Já me disseram que hoje talvez a maturidade me desse outra perspectiva e entendimento. Ainda assim não me sinto atraída, talvez depois de tantos outros livros em  primeira mão que quero ler. Talvez um dia.

O melhor acontece, quando o livro nos enleia de tal forma que as personagens nos acompanham no dia a dia, quase como se esperássemos ver algumas delas ao nosso lado na rua, ou parados no semáforo, ou até mesmo na janela do vizinho. Quase lhes sentimos o odor, tal a proximidade com que nos brindam, e não fosse o ridículo, poderíamos partilhar a nossa vida com elas, como fazemos com os amigos. Mesmo nos momentos em que não estamos a ler,  fazemos questão de os trazer connosco, a remoer aquela frase que foi dita, o que significaria afinal, e aquele encontro ao que levará.

São livros como estes, que parece que se integram em nós, como se deles fizéssemos parte, como se com eles tivéssemos acrescido a nossa visão do mundo, numa integração plena, que deixam saudades. Nem sempre os livros nos trazem um entusiasmo de ler sem parar. Ou um deslumbramento. Nem sempre saboreamos a conjunção de letras como notas musicais duma qualquer melodia prazerosa. Nem sempre nos sentimos estirados, desafiados, como se a  simples leitura nos fizesse crescer e  desenvolver. Mas quando ocorre, queremos e não queremos acabar a leitura. Queremos porque nos agrada, não queremos porque se aproxima o tempo de fechar o livro e guardá-lo, e não conseguimos, nem queremos, viver sem essa ambiência que nos preencheu o espirito. Despedimo-nos do livro com a certeza de que já vive em nós, olhamo-lo de quando em vez, como um amigo que fazemos questão de  manter por perto.

Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?

Franz Kafka

 

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