Fui casa. Voltei com cinco sopas e 11 livros

Caracterizar como “singular” a experiência de cada um de nós, durante a pandemia, é dizer muito pouco, mas a verdade é que só assim se torna possível explicar o facto de uns terem passado a comer tanto e outros terem aproveitado para começar a dieta.

Eu cá não chamaria “dieta” à relação que estabeleci com a comida: mexendo-me menos – quase nada – passei a comer menos, ainda que tenha criado espaço para um docinho semanal. E, quando digo “semanal”, não quer dizer que seja devorado num só dia da semana: é feito num só dia, sim, mas é suficientemente grande para se estender pelos outros sete. Afinal de contas, se isto é mesmo uma guerra, uma pessoa tem de estar preparada para o que der e vier.

A imagem de gente que raramente punha os pés na cozinha por estar muito cansada, mas que agora se dedicada a elaborados pitéus culinários, fica, aliás, como uma marca destes tempos. Do outro lado da barricada, fica uma sensação de aumento no consumo de produtos culturais, mesmo dentro de portas.

Talvez faça esta afirmação por estar fechada no meu mundinho. No entanto, o que ouço ao meu redor é que a malta aproveitou para pôr a leitura e o cinema em dia. De repente, as artes deixaram de ser vistas como uma fonte de ócio fútil para serem olhadas como um meio imprescindível para a sobrevivência.

Portugal deleitou-se com os diretos do Bruno Nogueira no Instagram. E isso teve o seu quê de cultura. A RTP criou a RTP Palco, com espetáculos online. Houve, até, uma iniciativa que levou poesia a idosos, através do telefone. A FNAC libertou ebooks, alguns museus ofereceram visitas virtuais e o Instagram ofereceu muitos outros diretos para lá dos do Bruno Nogueira.

A quarentena fez-se de pão e circo. Muito pão se cozeu nos fornos portugueses e muito pão certamente se comeu de Instagram ligado. No entanto, como já expliquei, eu faço parte da pequena fação da sociedade que passou a comer menos. Não sei se por medo de ficar sem latas de atum ou não, mas a energia de que precisava encontrei-a nos livros. Eles foram o meu circo.

E só assim se explica que, após ter visitado os meus pais quase três meses depois do confinamento, tenha agarrado, para a viagem de volta, em 11 livros e em apenas cinco sopas nutritivas da mãezinha. Mais do dobro de cultura, portanto.

Diziam que a pandemia era uma oportunidade para repensar prioridades. Seria disto que falavam? Desconfio que não. O setor artístico está a passar por graves dificuldades, apesar de tudo, mas certo é que nunca mais olharemos para a cultura da mesma forma. Terá sido esta paragem suficiente para a vermos como um bem de primeira necessidade? A resposta guarda-a o tempo, que continua inexoravelmente a passar.

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