Talvez [começar textos e frases com talvez, talvez (novamente) para vincar a dúvida sobre tantos juízos e opiniões] Frances McDormand não seja dos primeiros nomes que nos visitam quando pensamos nas melhores actrizes da História.
Há uma onda colectiva que envolve alguns artistas, que os eleva para além da qualidade do seu trabalho, ainda que essa onda tenha origem nessa mesma qualidade, sendo posteriormente alimentada por um comportamento lateral que os intérpretes oferecem aos fãs e aficcionados, formando assim a imagem completa que a sua persona (muito mais do que a pessoa de carne e osso ou até o artista, enquanto tal) deixará gravada na memória de espectadores e historiadores da sétima arte. Enquanto os nomes de Katharine Hepburn, Elizabeth Taylor, Bette Davis ou Meryl Streep surfam esta onda com naturalidade, Frances McDormand não. Ou pelo menos até há pouco tempo era “apenas” uma actriz respeitada (além de premiada), pese ser hoje a segunda actriz mais oscarizada da História!
Não me recordo da primeira vez que a vi actuar, mas apostaria em Fargo, pouco depois do reconhecimento da Academia. Julgo ter na altura comprado a VHS mal saiu dos clubes de vídeo. Estávamos em 1997 e eu não conhecia Frances McDormand, apesar de ser já um nome feito no Cinema Americano, o que reforça a injustiça que assola tantos intérpretes, de que apenas inscrevem os seus nomes na memória do reconhecimento quando um prémio lhes cai no prato.
E em Fargo, McDormand traz-nos uma interpretação deliciosa num filme negro dos irmãos Cohen, uma comédia negra que sobressaiu no género, alimentada por um argumento superior e um elenco celestial – William H. Macy, Steve Buscemi e Peter Stormare – de onde o trabalho de McDormand se eleva. Ainda que nunca deixe de aprender a gostar de Cinema, naquele tempo de adolescente esta arte assumia uma dimensão quase celestial na minha sede de ver e saber mais filmes, conhecer os movimentos, os prémios, a História.
Naturalmente, Frances McDormand foi-me aparecendo por essa altura. Mississipi em Chamas (outra videocassete comprada), de 1988, trouxe-a até mim num papel secundário seguro, corporizando uma história verídica do desaparecimento de três activistas dos direito humanos numa cidade sulista na década de sessenta. Gene Hackman assume as despesas do agente abrutalhado enquanto Willem Dafoe toma o lugar do nerd que, seguindo o código de conduta à risca, se confronta com a impossibilidade de jogar limpo um jogo sujo. Com Mississipi em Chamas veio a primeira nomeação, e a consolidação da minha curiosidade acerca do trabalho desta magnífica actriz.
Continuando a recuar no tempo, cheguei à sua estreia, com Amostra de Sangue, um exímio exemplar também dos irmãos Cohen, e terá sido nessa altura que soube ser ela casada com Joel Cohen. Vê-la tão jovem e bonita conflituou com o meu preconceito sobre uma actriz por quem eu não dava nada (por contraponto a essas outras já mencionadas que transportam todo um universo por nós construído) e que se torna bigger than life.
Simplesmente (ou não tão simplesmente), não me atraia e essa circunstância inferia na apreciação que fazia do seu trabalho. Nem sequer me posso esconder na adolescência ou no que fosse: a verdade é que uma actriz ou um actor não ficavam completos se não possuíssem uma certa beleza (física, leia-se). Não foi Mcdormand, mas Streep a principal responsável por derrubar esta visão deturpada nos juízos que eu fazia: tantos trabalhos magníficos foram rodando, grau a grau, o ângulo sob o qual eu ia apreciando o seu trabalho, quase como se não houvesse mais espaço para desculpas e me visse obrigado a admitir que Meryl Streep era genial. Ser ou não bonito deixou de importar, mas Streep até se transformou numa actriz lindíssima, daquelas belezas que aprendemos a apreciar e que nos transformam. Abanado o preconceito, Frances McDormand irrompeu pela minha paixão cinematográfica, e só confirmou o que os primeiros contactos haviam despertado. O próprio Gene Hackman, actor por quem durante anos eu nada dava, foi outra vítima deste meu enviesamento. E que actor maravilhoso ele foi!
Igual preconceito me acompanhou durante anos, mas do lado contrário do espectro da beleza, em que me custou a admitir que Brad Pitt, Ryan Gosling ou Johnny Depp, mas também Charlize Theron ou Audrey Hepburn poderiam ser excelentes actores ou actrizes. Não só não conseguia descolar a imagem que captava da transformação que observava na tela, como não dava abertura para que a minha opinião pudesse evoluir de uma forma independente dos corpos que a compunham; pior: não conseguia admitir a possibilidade de a minha própria visão do artista evoluísse, caso o seu trabalho se destacasse acima ou abaixo da média.
Não apreciava o trabalho de um(a) artista por não o(a) por não o(a) achar bonito(a) ou por considerá-lo(a) demasiado(a) bonito(a). Cresci cedo para o cinema, mas tarde para a vida. Talvez crescer seja também isto, ganharmos a capacidade de admirar ou criticar os outros apesar da imagem (mais cedo, na infância, aprendemos a fazê-lo apesar da primeira impressão que nos causam). Enfim, depois de Streep, Frances McDormand ganhou, também ela, o lugar na galeria dos notáveis. Com uma agravante: enquanto Streep há muito que é (merecidamente) por todos reconhecida, McDormand parecia ficar sempre na sombra. Era respeitável e tal, mas isso era tudo.
Fui seguindo mais ou menos cronologicamente o seu trabalho, e em todos eles nada tenho a apontar à sua prestação. A Raíz do Medo (1996), Alguém tem que Ceder (2003), Quase Famosos (2000), Três Cartazes à Beira da Estrada (2017), North Country (2005) e Nomadland (2020), formam a corrente ordenada que segui no aprofundamento da minha condição de fã desta magnífica actriz.
E se nem todos são filmes de primeira linha, de quase todos transparece um trabalho notável de McDormand. Vieram mais óscares com Três Cartazes à Beira da Estrada e, três anos mais tarde, com Nomadland. Em três anos, uma actriz que contava com um óscar, e portanto, com um palmarés que pouco se diferenciava das demais artistas premiadas, saltava para o segundo lugar (somente atrás de Katharine Hepburn) de sempre, com três estatuetas na categoria principal no currículo. É justo. E é injusto que tenham que ter sido os óscares a catapultar o nome de Frances McDormand para a galeria dos sublimes quando todo o seu trabalho até então já o revelava. Por mais críticas que faça aos óscares, aos critérios por trás da sua atribuição, aos prémios por simpatia ou compensação, etc… durante décadas não fui imune ao facto de o meu reconhecimento ter andado “à boleia” destes prémios (apesar de, com os anos, ter vindo a ganhar uma maior independência, ao ponto de hoje pouco ligar a estas premiações).
É também por tudo isto que Frances McDormand me merece um louvor especial: por contribuir, com a enormidade de qualidade que o seu trabalho encerra, para me ajudar a quebrar preconceitos. Um pouco como se só tivesse atingido esta maioridade (e maturidade) aos vinte e cinco anos (não sei exactamente quando foi que comecei a descolar e a apreciar os artistas pelo valor intrínseco do seu trabalho: nunca é somente o trabalho que apreciamos, mas faço por que ele seja o factor principal numa apreciação). A cada trabalho, Frances McDormand somente corrobora a verdade por trás da excelência que entrega a tudo o que faz.
PS: Referi apenas os filmes que vi da actriz, mas sei que entrou numa série (que não vi) adaptada de um dos livros mais bonitos que li nos últimos (largos) anos – Olive Kitteridge. Aquando da leitura, não era o rosto de McDormand que via na execrável personagem do romance homónimo (nem é bem um romance, mas um conjunto de pequenas histórias em torno de uma personagem, Olive) de Elizabeth Strout; neste momento em que leio A Segunda Vida de Olive Kiteridge, continua a não ser a actriz que vejo naquelas linhas, mas um rosto por mim imaginado há uns dez anos, quando li o livro inicial. Contudo, tenho a certeza de que Olive nada fica a dever em mau feitio e azedume à prestação de Frances McDormand. Aposto.
[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]