“E viveram felizes para sempre.” É o final em que todos os contos de fada nos fizeram acreditar, ao longo da nossa infância. À medida que crescemos vamos despertando para uma realidade que não tem assim tantos finais felizes, como pensávamos, quando éramos crianças. Como adultos, temos contas para pagar, temos de ir ao dentista, preocupar-nos com os nossos filhos, ir para os nossos trabalhos, esforçarmo-nos para atingir os nossos objectivos e, muitas vezes, não conseguimos alcançar o conto de fadas que outrora sonhámos que viríamos a ter. Porém, parece que viver um conto de fadas não é assim tão bom como a frase no início deste texto parece transparecer. Que o digam os habitantes da pequena cidade em Maine, Storybrooke, na série Once Upon a Time.
Se passearmos pelas ruas pitorescas desta pacata cidade, não aparenta haver nada fora do comum a acontecer. Temos em Mr. Gold o empresário rico, que vive do arrendamento de prédios, em Archie Hopper o psiquiatra, que vive preocupado com os seus pacientes, e em Regina, a mayor de Storybrooke, a mãe que tenta criar novos laços com o seu filho adoptivo, Henry. Só que todos eles, tal como nós, sentem que estavam destinados a terem uma vida melhor, de conto de fadas. O que, de facto, é verdade. Gold foi, noutro reino, o temido Rumpelstiltskin/O Sinistro, enquanto que Hopper foi o Grilo Falante e Regina só poderia ter sido, como é óbvio, a Rainha Má… ou não será ela assim tão má?
Once Upon a Time vive das fendas que existem entre os vários contos de fada e vai preenchendo a sua narrativa das várias ligações que existem entre os personagens dos contos de fadas, criadas através das suas interacções. A série, criada por dois argumentistas da série de culto Lost (Edward Kitsis e Adam Horowitz), segue alguns dos elementos que tornaram Lost em Lost – a existência de mundos diferentes, flashbacks desconcertantes e relações interpessoais, que só podem ser perfeitamente entendidas, se o espectador estiver atento, uma vez que muitas delas necessitam de ser decifradas. Apesar de não ter uma caracterização tão profunda como a sua anterior criação, a série apresenta-nos personagens bidimensionais, que conseguem fugir aos estereótipos que as suas versões nos contos de fadas normalmente são. Como refere Mary Margaret, no episódio-piloto, as histórias de encantar são “uma forma de se lidar com o mundo”. Como tal, esta série tem a capacidade de aludir tanto a verdades universais, como a temas mais profundos.
Se, por exemplo, for analisado o percurso incial de Emma, que escapou à maldição que colocou toda a acção da série em movimento, ao criar através da magia a cidade sem magia conhecida como Storybrooke e onde os seus habitantes não se lembram das suas verdadeiras identidades. Enquanto era bebé, Emma foi colocada num armário (num piscar de olhos a As Crónicas de Nárnia), que a transporta para o nosso mundo, até atingir os 28 anos e regressar para junto da sua família, para poder acabar com a maldição lançada pela Rainha Má. Só este segmento do primeiro episódio está repleto de referências pagãs (Perseu foi enviado para longe do seu reino num cesto) e cristãs (Moisés foi colocado num cesto e posto no rio Nilo). Claramente, esta série pretende contar-nos histórias que não são apenas relacionadas com os contos de fadas.
As personagens nesta série não são perfeitas, como nos contos de fada, têm falhas e são humanas. Elas lutam entre si, sangram e morrem, sendo que algumas delas chegam a dizer asneiras. A tentação da infidelidade, em nome do “verdadeiro amor”, já foi tema abordado, a pare do (recorrente) tema do uso da magia, alguma dela negra, que acarreta sempre consequências, especialmente para aqueles a quem se ama.
Estando já na sua terceira temporada e depois de se ter centrado em temáticas como a procura pelas raízes e a luta pelo amor, Once começa o seu episódio de estreia com um paralelismo com o episódio-piloto, em que Branca de Neve é obrigada a abandonar a sua filha, Emma, depois dela nascer. Em “The Heart of the Truest Believer”, a narrativa começa com um recuo de 11 anos, com Emma a dar à luz o seu filho, Henry, na prisão e a abandoná-lo para o sistema de adopção, perpetuando as raízes deste bebé nos dois lados da sua árvore genealógica, já que o seu pai, Neal/Baelfire, também foi abandonado pelo seu pai, que, por sua vez, também foi abandonado pelo seu.
Com esta terceira temporada a ter como cenário a pequena ilha da Terra do Nunca, com os seus meninos perdidos e o Peter Pan, este deve ser o tema central destes novos episódios. Ser abandonado em tenra idade causa um trauma difícil de ultrapassar, quando as crianças se tornam adultas. É normal que se cresça com pouca auto-estima, desconfiado de todos os que se tentam aproximar, cínico, sempre na defensiva, como se a sociedade fosse a inimiga, e com problemas emocionais profundos. Contudo, perante este cenário, torna-se imperativa a necessidade de se ultrapassar este trauma e, para o conseguir fazer, é necessário aceitar-se como se é e, depois, recomeçar a acreditar em si mesmo. Estas são temáticas muito poderosas em termos narrativos para Once Upon a Time e, nos dois primeiros episódios da nova temporada, é possível ver o começo desta jornada de aceitação para Emma, Rumple e Baelfire, num paralelismo contrastante com a população de crianças abandonadas que vivem na Terra do Nunca e com o reclamar do seu reino por parte de Branca de Neve à Rainha Má.
De todas as personagens que partiram à procura de Henry das mãos do maléfico Peter Pan, Mr. Gold é quem tem mais a perder, já que, tal como tinha sido preconizado na segunda temporada, acredita que Henry será o seu fim. Apesar de ter a consciência de que poderá morrer nesta missão, continua obstinado em seguir em frente sozinho e é, neste percurso solitário, que reside a hipótese de Rumple provar a si mesmo de que não é igual ao seu pai, um cobarde que abandonou o seu próprio filho. A “morte” de Neal/Bealfire mudou-o e, por mais corajoso que seja perante algo do passado que o atormenta, é a crença de que será capaz de terminar com o ciclo de abandono que lhe dá a força para continuar.
Once Upon a Time recorre aos estereótipos dos contos de fadas em que se inspira para fazer uma clara distinção entre o bem e o mal. Constrói personagens que criam laços entre si e utiliza-as, juntamente com as suas versões dos contos de fada, para contar aos espectadores uma verdade muito importante: todos nós somos mais do que aquilo que aparentamos. Diz-nos também que existem sempre segundas oportunidades para sermos melhores pessoas e, assim, atingir o nosso próprio “viveram felizes para sempre”.