Ele é Arte

Não se recordava do exacto momento em que o conheceu. A primeira lembrança que tinha na memória com ele, foi numa ocasião onde estavam os dois meio deslocados no meio da multidão. Trocaram um olhar cúmplice e sorriram, sentiu que não estava sozinha. Tinha a certeza que se cruzaram mais vezes, mas só se lembra de o voltar a ver passado algum tempo no mesmo lugar. Ele estava diferente e a partir desse dia, todos os dias, à mesma hora, ele estava lá.

Trocavam poucas palavras. Conversas breves de circunstância durante meses, mas sentia uma afinidade inexplicável. Sentia-se acolhida naquela simpatia desprovida de qualquer interesse ou intenção. Ao contrário das outras pessoas, ele era simples na abordagem. Não se conheciam, nada sabiam um do outro. Nem o nome. Não faziam perguntas. A espontaneidade com que os assuntos fluíam naquele tão breve momento do dia, foi suficiente para criar um laço. E nada pode ser mais verdadeiro que um laço que surge e fortalece sem qualquer pretensão.

O “click”…Estava um dia chuvoso. Como habitualmente, chegaram à mesma hora ao local do costume. Esse lugar onde se cruzavam diariamente fazia parte das suas rotinas. Um acaso. Mas naquele dia de chuva, tudo mudou. Antes de cada um tomar o seu rumo, ele olhou-a de uma forma tão ternurenta e soltou um “tchau” tão sedutor que se tornou impossível continuar indiferente. Nesse momento, ela paralisou enquanto a sua memória lhe trouxe à consciência todos os sinais transmitidos nos últimos meses. A forma como se aproximou dela, a subtileza com que a cortejou… Como pôde não perceber e durante tanto tempo? Tomou o seu rumo e tentou esquecer, mas não conseguiu. Percebeu que ele estava a conseguir alcançá-la…

Diz-se que os olhos são o espelho da alma. Que dizem mais do que sentimos que as palavras. A verdade é que às vezes basta um olhar para entendermos coisas que as palavras não podem explicar. Tentou convencer-se de que estava enganada. Mas houve diversas situações, olhares e reacções que lhe mostravam que o seu instinto estava certo. Ele percebeu e enquanto ela tentava, de forma indirecta e subtil entender, ele fugia. Então decidiu afastar-se dele e tentar esquecer.

“Podes fugir mas não te podes esconder”. Ambos fizeram por evitar uma situação mais desconfortável. Ambos alteraram rotinas para não se cruzarem. Ela percebeu que ele também o fazia porque também se atrasou ou antecipou relativamente ao horário habitual com cada vez mais frequência. O que resultou foi um rol de coincidências sem fim, e não foi só no local inevitável. Onde quer que ela fosse, ele estava lá ou aparecia. Não sabia se ele pensava que não era por acaso, mas tal como ela, acreditava que também não sabia que a ia encontrar. De repente eram dois estranhos. Já nem sequer se cumprimentavam. O incómodo era tão grande que ela chegou a sentir-se mal. Considerando que aquele afastamento era um mal necessário, porque lhe custava tanto?

Não podiam. Não deviam. Não era suposto. Mas então como e porque é que…questionou-se sobre isto durante algum tempo.

A verdade é que achamos que estamos imunes até nos acontecer. Pensamos que controlamos tudo até nos atingir. Ela sentia a falta daquela possível amizade despretensiosa que estava a surgir, daquela pessoa diferente que a fazia sentir bem. Mas não entendia porque é que ele se tinha aproximado dela com aquele jogo de sedução tão subtil, elaborado e paciente, sendo óbvio que ele não era um homem de paixões. Ele era tímido, delicado e charmoso. E a forma como a tratava fazia-a sentir-se especial. Ela estava encantada sim, mas não tinha qualquer expectativa. Nem podia ter.

Não sabia o que era, mas quanto mais lutava contra o que sentia, mais aquilo a consumia. Certamente ele travava a mesma batalha internamente. Com o passar do tempo e uma maior convivência inevitável, finalmente souberam o nome um do outro. E coisas da vida de cada um. Sem perguntas. Foi natural. Aprenderam a disfarçar o incómodo pela presença do outro aos poucos, houve muitos momentos em que ela até acreditou que já lhe era indiferente e fez por lhe mostrar o mesmo. Mas o olhar, sempre que o cruzavam directamente, denunciava o contrário. Aprenderam a gerir as emoções e tudo indica que conseguiram sempre fazer com que ninguém percebesse. Apenas isso, porque dentro deles, sem nunca se terem sequer tocado, e apesar de todas as tentativas de apagar a chama, ela continuava bem acesa e casa vez mais intensa.

Paixão. Desejo. Apego. Carinho. Isto. Disto ela tinha a certeza que sentia. E sentia que era mútuo. Durante muito tempo tentou convencer-se de que não passava de uma fantasia. Mas cada gesto de indiferença da parte dele era seguido de uma demonstração do oposto e isso impedia-a de se conformar. Aquele olhar transmitia-lhe sempre tanto, que nenhuma palavra podia dizer mais. Houve momentos em que ele se manteve por perto até ela estar bem e isso às vezes vale mais do que um abraço. Houve momentos em que ele, ainda que à distância e sem dizer uma única palavra, a confortou apenas com um olhar e um gesto de preocupação. E isso significa muito.

A perfeição não existe, por muito perfeccionistas que sejamos, por muito que nos esforcemos. Mas existe algo de muito semelhante à perfeição quando permitimos que as coisas fluam naturalmente e elas acontecem e culminam em algo muito melhor do que projectamos. Tantas vezes perdemos oportunidades por medo de agir. Tanta vezes falhamos por nos deixarmos trair pela nossa ansiedade e apressamos as situações. Se houve coisa que ambos aprenderam durante este processo todo foi a ter paciência. A saber esperar, mas sem perder tempo. A saber aproveitar, mas sem condicionar. A perfeição é uma ilusão? Talvez, mas existe algo muito sublime próximo da perfeição que nos envolve quando nos permitimos entregar a um momento da forma mais natural que a vida nos proporciona.

Continua…

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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