Ontem, na sua tomada de posse como Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa citou Miguel Torga em algumas linhas que vão no mesmo sentido de algo que Camões e Fernando Pessoa também nos deixaram. Num discurso sóbrio e positivo, Marcelo deixou para a posteridade uma intenção que, a meu ver, deveria ser pensada e sentida dentro de cada um de nós, a de compreendermos a dimensão espiritual de um povo cujo propósito sempre foi, é e será a descoberta, a revelação.
Marcelo Rebelo de Sousa torna-se presidente num tempo especial e desafiador, onde muitos obstáculos se impuseram no passado recente, mas muitos outros se vislumbram no futuro. Torna-se presidente num tempo onde há uma fractura grave, exposta, que gangrena a cada dia que passa. Não é uma ferida nova, é bem antiga, uma divisão que, cada vez mais, se torna ridícula e desproporcionada, que tantas vezes, neste mesmo espaço, referi, a que se coloca entre esquerda e direita, conceitos provenientes da Revolução Francesa, totalmente desajustados duma realidade social, económica, financeira e política que pede integração, parceria, foco e futuro.
O grande desafio do novo presidente será unir o que tem sido tão difícil de unir, o de criar consensos, o de elevar o espírito nacional. Tarefa fácil não será, certamente, mas acredito que Marcelo será a pessoa mais indicada para o fazer. Abrindo um novo ciclo de presidência, depois do tão contestado e austero ciclo anterior, creio que Marcelo tem também a possibilidade de abertura de um novo ciclo político, embora tal só seja possível se conseguir ser a ponte entre PS e PSD, uma construção que parece, neste momento, ainda extremamente difícil.
No entanto, é incontestável que o desafio desta presidência será atingir aquilo que, independentemente da opinião que se possa ter sobre Cavaco, ele já tinha referido, o potenciar de diálogo e união em prol da causa comum, da Nação, dentro da Assembleia, ultrapassando a barreira da ideologia, criando planos de médio e longo prazo, compromissos políticos que têm, como grande propósito, o desenvolvimento social. Para tal, também é necessário que haja uma modificação na própria sociedade, pois todas as instituições são o reflexo do que somos, e isso não augura muito de positivo. Se a Assembleia, a constituição do Governo e o desenvolvimento do país reflectem a clara divisão que existe em termos ideológicos e sociais, pedindo, como num outro artigo aqui referi, consensos e um diálogo que não está a acontecer, então a eleição de Marcelo, a meu ver, é um apelo a um factor de equilíbrio, a um foco de debate de ideias, motivação e energia. Para bem de todos nós, é importante que o novo Presidente seja capaz de assim o fazer.
É preciso que haja uma reaproximação das instituições às populações, um maior diálogo e um maior debate sobre a nação e sobre o seu desenvolvimento. As mentalidades não se mudam com decretos nem leis votadas dentro da casa da república, sem consciência da realidade do país, das suas verdadeiras necessidades, e se é certo que não cabe ao Presidente a tarefa de legislar, também é certo que é urgente que a primeira figura do Estado renove e actualize as suas funções, face a um mundo diferente, face a um país que vive uma crise de desenvolvimento, como uma transição de idade que todos vamos tendo ao longo da vida. Marcelo não tem de agradar a todos, não o irá certamente fazer, como nunca o fez, e até, como já vi, pode-se referir que ele esteve a preparar a sua candidatura durante anos a fio enquanto comentador, mas a verdade é que, no cenário actual, provavelmente, é a pessoa mais bem preparada para este desafio, com mais valências para um cargo que, com toda a certeza, maior parte da população deixou de entender, se é que alguma vez entendeu.
Acima de tudo, é preciso que Portugal e os portugueses se recordem da sua dimensão histórica, das capacidades que intrinsecamente têm. É preciso que compreendamos que a nossa maior força não é a mão de obra ou a operacionalidade, mas sim o sonho, a paixão, a emoção, tudo o que nos fez querer saber mais, ir mais longe, descobrir novos mundos, abrir as portas que antes estavam fechadas. São também essas bases que nos farão mudar o foco do nosso desenvolvimento, da nossa sociedade, da nossa economia, que, se assim quisermos, nos permitirão abrir novos mundos ao mundo, descobrir novas dimensões e realidades, sermos a ponte entre o materialismo e uma nova era, mais espiritual, mais humana. Para isso, temos nós de destruir e renascer do nosso próprio materialismo, da nossa própria ganância, da nossa própria arrogância, de tudo aquilo que durante tantos séculos criámos em nós, doenças que infectaram a nossa identidade. Apenas dessa forma, poderemos, como dizia Pessoa, fazer cumprir-se Portugal.