Carta aberta ao ultrAMAR

Vou escrever-te porque não falas. Vou escrever-te ao som do silêncio de uma harpa que ecoa, enquanto te deixas estar nessa vida de recobro de onde nunca saíste. Que o som calado da harpa dê a isto beleza. Que todos os que aqui estão isto vendo se atentem ao som, senão não tem isto sentido. Não ouves, além de não falares. Não consegues chegar a esta melodia por conta de, no recobro, ser o som sempre o mesmo. E tu, velho mortiço albardado pela guerra, não sabes dela te ver livre. Não te desalbardaram, nem os que te albardaram. Deixaram-te vegetal para um mundo que nada a ti te foi. Degolaram-te os sonhos. Degolam-te as lembranças dos marinheiros em mar de sombras. Marinheiros famintos de nuvens de algodão que a sonhos se pareçam.

Sentas-te mil vezes na mesma escada, que não desce nem sobe. É a tua vida um desses degraus onde nada acontece. Não há pé que lhe assente para coisíssima nenhuma. Não passa aí ninguém que te vá falar. A bem dizer, para quê? Tu também não falas, nem ouves, nem nada. Nem sei se te incomoda o não passar aí ninguém. Assim como assim nem os vês, nesse recobro infinito. Mortiço estás desde que dela vieste, infausta no que nos deixou: “centenas de ti”, velhos albardados. Não há apoteoses que a coisas destas se possam fazer.

E a harpa, ouves? Escangalhadas cordas, escangalhadas vidas. E os impúberes moçoilos desta aldeia do mundo, nem sabem quem tu és, nem porque nessa escada te sentas, nem que albarda carregas, nem quem ta meteu no lombo. Dão-te como senil, velho mortiço, em recobro ilógico. Fastidiosas circunstâncias que a isto te levaram, que aqui te trouxeram. Nem a morta perna deu movimento aos teus dias. E isto que nenhum sentido faz, é o mais lógico em ti. Vale-te a bala que apanhaste para que desta vida tenhas tu apanhado alguma cousa. E essa barba desleixada, com a idade das sepulturas que abriste, dos mortos que enterraste. Tu, ó mortiço velho de barbas que contam a idade da morte.

Calendário de perda. Ímanes de vazio, esses teus olhos, nela pregados interruptamente.

Emaranhados e dormentes todos vós, solitários de nada. Despidos de crença no destino, mais sabem vós quem os teceu. Em nada a Deuses se parecem. E reza-te a mulher, minha mãe, as fés que tem, a alguém que vos acuda que tu, mortiço velho, nada acodes nem a nenhum rezas. E tu, que a ouves em sussurros e em prantos, te deixas apático na escada, invejando a fé de uma mulher que nisso emaranhaste. Nesse recobro. A tirania dos homens – marco velho –, mortiço homem de apáticas barbas. O Zé nem a isso chegou, nem deixou a barba crescer. Ceifou o destino cá chegado. Tinha a barba feita. Enterrou-se o corpo assim, de rosto de pelo limpo. Mas tu, que aí te sentas, sem conversas faladas, deixaste-te ficar para fazer viver o Zé.

Lembrança.

Deves falar-lhe, tal qual a melodia vagarosa do silêncio da harpa que ecoa. Estou nisto certo, denuncia-te a fotografia em cores ausentes, de vós camaradas. Sorrisos de quem ainda via nuvens de algodão. Vai já estando gasta, a fotografia, das vezes fartas em lhe passas os dedos. Retrato de algibeira – de uma vida que não a acreditaste perfetível e a ela te deixaste estar agarrado, a essa noiva sem grinalda com quem casaste. Desse arranjado casamento em campo de batalha. Essa noiva de grinalda despida que sobrenome não tem, por ser o primeiro quanto baste: GUERRA.

E eu, filho teu, que no estojo do que conheço ainda não descobri a borracha para deixar em ti apenas o que te quero ultrAMAR.

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