A Lili sempre viveu comigo. Quando chegou, mínima, minúscula e quase careca, fazia lembrar uma caricatura e não uma cadela bebé. Nunca soube a idade que teria, porque a falta de pêlo enganava a contagem. Estou em crer que foi amor à primeira vista, mas naquele momento ainda não o tinha percebido.
Estava de volta dumas fotos quando a campainha tocou. Era um dos meus vizinhos que conhecia o meu coração mole nestes assuntos de cães. Trazia-a embrulhada numa manta e só se percebia um nariz muito escuro e nada mais. Não resisti. Peguei logo nela. Era linda mesmo parecendo um pequeno pedaço de qualquer coisa que nem se percebia.
Quando a coloquei nos meus braços senti um pequeno coração a bater e uma sensação curiosa. Penso que navegamos no mesmo barco da mansidão e da sintonia. Não queria comer, somente colo. Pensei que não iria vingar, mas ao fim do segundo dia abriu a goela e ouvi a sua voz pela primeira vez. Estava a lutar pela vida.
Mais tarde soube que estava num saco de plástico, junto a um contentor do lixo. Maldades humanas que ela dispensava, mas sentiu. O pêlo demorou a crescer e quando se mostrou, em todo o seu esplendor, causava inveja a qualquer patudo. Um tom tão belo que não passava despercebida. Estava linda!
A nossa cumplicidade foi sempre total. Houve um entendimento que poucos humanos conseguem sentir. Parcerias que se repartiam em atenções e muitas alegrias. Era a cadelinha mais feliz do mundo. Viajámos por tantos locais e parecia que apreciava tudo. Colocava o focinho de fora, sentia o vento e sorria mostrando uns dentes muito brancos e certinhos.
O tempo foi passando e nem demos por ele. Eu, mais velha, não o sentia, mas ela, com menos reservatório que eu, sentia-o no corpo que começava a dar sinais de chegar ao limite. Primeiro deixou de ouvir, depois foram os dentes que a abandonaram, a seguir as cataratas vieram para ficar e por fim as dores que não a largavam.
Já não conseguia pular e nem respondia ao chamamento, mas continuava a dar imenso amor que preenchia a ausência do resto. Eu sabia que ela não era eterna, mas, no meu íntimo, havia a esperança que nunca se fosse. Um egoísmo tão grande que me consumia diariamente. Quando chegasse o momento tinha que a soltar, mas desejava que nunca acontecesse.
Num dos nossos passeios nocturnos, quando já a trazia ao colo, porque as pernas não aguentavam mais, ouvi uns sons familiares. Estava escuro, mas distingui o contorno duma caixa de cartão grande. Aproximei-me. Abri-a. Eram três pequenos gatos, minúsculos, que miavam com fome. Fiquei petrificada. Não ficariam ali na rua e sem protecção.
Levei a Lili para casa e fui buscar a caixa. Era a minha primeira experiência com gatos. Diziam que eram independentes. Tinha muito que aprender. Ficaram no quarto vazio para a velhota ter descanso. Assim que abri a caixa soltaram-se como formigas e tomaram conta do espaço. Tanta vida a pulsar e uma outra a definhar. Que injustiça.
A Lili morreu na noite que eu sabia. Nos meus braços. Já o esperava e estava tranquila. Senti-lhe o último suspiro e o coração a deixar de bater. As minhas lágrimas caíram desnorteadas e soltas, quais rios que buscam o mar da tranquilidade e tocaram no seu corpo mirrado e velho. Muitos anos de parceria que acabavam de modo violento. Para mim foi, para ela não. Descansou.
Pode ser ilusão de quem sofre a perda, mas vi-lhe um sorriso de alívio por já não sentir dores nem se esquecer quem eu era. Olhava para mim, abanava a cauda, mas o seu pequeno cérebro desligava-se. Senilidade. Uma tristeza enorme, mas real. Doía-me tanto, mas nada mais podia ser feito.
A vida é mesmo curiosa. A Lili deixou de existir e os três gatinhos brincavam alegres e despreocupados no quarto ao lado. Para eles ainda era o início da caminhada e apesar de estarem debaixo de mesmo tecto, não sentiam que uma vida se ia gastando. Felizes os que não sofrem.
Chorei todas as amarguras que estavam guardadas e as raivas que ainda iria sentir com as saudades. A Lili era especial, a primeira que criei sozinha e a que nunca saiu do pé de mim. Aquele aperto no peito ainda iria durar por muito tempo. Uma espécie de murro seco cheio de sentimento. Fiquei devastada.
Ficou enterrada no quintal, debaixo da árvore que tentou sempre subir. Ela sabia que não era capaz, mas tentava. Assim como fez com a vida. Tanto se esforçou que viveu dezoito anos. Uma maioridade que não lhe permitiu aprender a conduzir nem a tomar decisões mais complicadas. Somente as simples: amar incondicionalmente.
Agora os gatos brincam com ela, arranham a árvore e sobem onde ela nunca conseguiu. Receberam a sua herança e honram-na. Também sabem rir, mas de modo bem diferente: com os olhos que se abrem muito quando digo os seus nomes. Dormem na cama que foi dela e devem sentir-lhe os pensamentos. Gosto de pensar que recebem mensagens secretas e executam as tarefas.
Estou encantada com estes seres. São dóceis e amorosos. Uma agradável surpresa. Conquistaram-me. Não me largam e tenho a certeza que sabem que ainda choro a morte da minha Lili. De certa forma associo-os aos salmões que morrem para serem o alimento dos filhos. A chama da Lili passou para eles e nunca vai parar de brilhar.