Desde junho de 2016, as consequências do resultado do referendo no Reino Unido reverberam na comunicação social internacional. Agora que, por decisão da Suprema Corte britânica, o voto popular pela saída da União Europeia terá de ser confirmado por uma votação em Parlamento, aqueles que ainda defendem a permanência veem uma réstia de esperança. Porém, o cenário geral é de que o país invoque o Artigo 50 do Tratado de Lisboa e assine sua saída definitiva de uma união com a qual sempre teve uma relação de amor e ódio.
O referendo e a vitória do Brexit não vieram por acaso. Para entender como se chegou a esse ponto, é preciso revisitar mais de meio século de relações conturbadas do país insular com o continente. A atitude isolacionista do Reino Unido perante as tentativas de integração do continente europeu já era polémica na década de 1950, nos tempos de Winston Churchill e da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, da qual o país não quis participar. Em 1957, na assinatura do Tratado de Roma, que formou a Comunidade Económica Europeia (CEE), o Reino Unido teve a oportunidade de se juntar aos seis países signatários, mas também recusou.
O pensamento na época era de que, mesmo no fim da Segunda Guerra Mundial, o país havia mantido o estatuto de potência global, que seria comprometido, dizia-se, caso se juntasse a outros países em uma instituição supranacional, seja ela qual fosse. Aliado a isso, havia a crença de que o Reino Unido tinha o papel de elo de ligação entre a Europa e os Estados Unidos, bem como o sentimento de que o país ainda detinha forte influência financeira e estratégica sobre os países e territórios membros da Commonwealth, que eram parte do então enfraquecido Império.
Com a economia estagnada na década seguinte, e a ficar para trás em relação ao crescimento de França e Alemanha, o Reino Unido bateu à porta da comunidade. No entanto, esbarrou num obstáculo que se revelava intransponível: o presidente francês Charles de Gaulle. Por duas vezes, governos britânicos tentaram colocar o país na comunidade, porém, em vão. De Gaulle criticava aspectos económicos do Reino Unido, que julgava incompatíveis com o projecto europeu que se consolidava. Além disso, ele não via com bons olhos a relação de proximidade dos britânicos com os Estados Unidos.
Apenas quando De Gaulle saiu de cena, em 1973, a Comunidade Europeia aceitou a entrada do Reino Unido, mas não demorou muito para que surgissem as primeiras turbulências. Dois anos mais tarde, foi realizado um referendo sobre a permanência no bloco, defendida por conservadores, trabalhistas e pelos grandes veículos de comunicação social. A campanha surtiu o efeito desejado: 67% da população votou pelo “fico”. Porém, o voto por si só não foi suficiente para enterrar de vez a questão, pois a economia não dava sinais de melhoria.
Curiosamente, foi um governo do Partido Conservador, liderado por Edward Heath, a obter êxito no ingresso do Reino Unido na CEE. Margaret Thatcher, ainda deputada pelo partido, e famosa por sua postura antieuropeia quando primeira-ministra, também contribuiu na campanha pela permanência no referendo. A oposição mais concertada vinha de deputados do Partido Trabalhista, encabeçados por Michael Foot, candidato trabalhista ao cargo de primeiro-ministro nas eleições de 1983. No entanto, a questão gerou divisões dentro dos próprios partidos: Foot era um dos que compunham a ala radical dos trabalhistas, que defendia a saída, tal como os conservadores mais radicais.
Nos anos 1980, durante os governos de Margaret Thatcher, os papéis se inverteram. Enquanto os trabalhistas, sob a alçada de Neil Kinnock, se posicionavam de forma mais moderada, defendendo as contribuições do país para a Comunidade Europeia, Thatcher começava a perder a paciência com as ingerências de Bruxelas nos destinos do país. Numa de suas memoráveis batalhas, a então primeira-ministra renegociou a contribuição do país (3º maior contribuinte na altura, mas com ínfimo retorno) e conseguiu obter o chamado “cheque” britânico (rebate), ou seja, a devolução de parte dos fundos destinados ao espaço comum.
Apesar de ter sido ela a assinar o Acto Único Europeu, que estabelecia as normas de criação de um mercado comum, Thatcher discordava da política de Jacques Delors, então líder da Comissão Europeia. Segundo ela, o francês direcionava a união a um modelo de superestado europeu, de estrutura federal e com tendência a criar uma moeda única. No entanto, esse eurocepticismo intransigente fomentou as divisões dentro do Partido Conservador. Nesse ambiente, o deputado eurófilo Michael Heseltine lançou o desafio à liderança de Thatcher, e ocasionou sua saída do governo.
Mais simpático à Comunidade Europeia do que Thatcher, seu sucessor, John Major, não se safou de encarar grandes problemas nos anos 1990. A assinatura do Tratado de Maastricht, além de formalizar a criação da União Europeia, envolvia grandes transferências de poderes para Bruxelas. Apesar de o Reino Unido ter conseguido negociar a opção de não participar da moeda única, um dos muitos pontos em que o país não se alinha com o regulamento europeu, o facto é que o aprofundamento da integração política e económica da União era inevitável.
Os anos de Tony Blair e dos trabalhistas no poder foram marcados por uma política de conciliação. Blair incluiu o país nas políticas sociais e até era mais amigo da ideia de se juntar à zona do euro, mas a ideia caiu por terra devido à oposição de Gordon Brown, então ministro das Finanças. Mesmo assim, de 1997 a 2008, o esforço dos trabalhistas em apaziguar as relações com a União Europeia acabou por fazer adormecer a questão… até estourar a crise económica e financeira mundial, e o problema reacender-se de vez.
De lá para cá, as pontes construídas nos governos trabalhistas acabaram queimadas pelos conservadores, na administração de David Cameron. A crise do euro e suas consequências para a população europeia aumentaram o cepticismo em relação a todo o projecto. Pressionado pelo próprio partido, pelo eleitorado britânico, e pelo crescimento do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) e de seu líder, Nigel Farage, Cameron acabou por ceder, buscando renegociar os termos de pertença à União, para logo tentar promover mudanças na maneira em que a própria União é gerida, antes de prometer realizar um novo referendo, caso vencesse as eleições legislativas de 2015.
A postura de Cameron de postergar o debate e a resolução da questão europeia virou-se contra ele da pior forma possível. Ao vencer o pleito, teve de cumprir o que prometeu. Apostando seu futuro político no referendo europeu, foi derrubado pela desilusão da população, sobretudo a mais desfavorecida, com as promessas que não saíram do papel. Com a vitória do Brexit, disse que invocaria o Artigo 50 de imediato, logo que o voto pela saída se confirmasse. No entanto, acabou por renunciar ao cargo na manhã seguinte ao referendo, mas não sem empurrar o assunto para Theresa May, escolhida sua sucessora em eleição interna. Ela é a responsável por respeitar o desejo da população e escrever o capítulo final da história do Reino Unido na Europa a 28.
Após todo o drama político que se seguiu à escolha da população, a palavra que define o momento actual é incerteza. Segundo o tratado vigente, do momento em que comunicar à União Europeia a sua intenção de sair, o Reino Unido terá dois anos para negociar os termos da retirada, no entanto, especialistas apontam que as conversas podem entrar na próxima década. A primeira-ministra May tenciona começar as negociações em março de 2017, mas enquanto o processo não começa, a dúvida e o receio do futuro estarão nas vidas de milhões de famílias.