Um grande filme que não parece sê-lo à primeira vista (pelo menos a mim), mas que cresceu com o tempo, extravasando, na ideia que fui construindo sobre o que havia visto, algo muito maior do que o que Blake Edwards filmou, Truman Capote escreveu e Audrey Hepburn e George Peppard corporizaram: Boneca de Luxo – Breakfast at Tiffany’s!
Um filme que se me apresentou como ligeiro, mas que depressa foi galgando as camadas da compreensão, da sensação, esse objecto estranho que fica depois de tudo ter terminado, quando na realidade percebemos que é aí que tudo começa para nós, que ao reviver o que vimos, ao recuperar pedacinhos do filme, tudo se transforma no novo sentido que lhe damos, refazendo uma obra que, no momento em que a vimos, em casa ou no cinema, era igual para todos, em algo só nosso.
Vi Boneca de Luxo em casa, num canal por cabo, antes dos trinta. Um dos meus pais (não me lembro qual) apareceu na sala e disse que o filme era conhecido, ficando a vê-lo comigo. Ainda bem por um lado; ainda mal por outro. É um filme delicioso, com uma música lindíssima de Henry Mancini, Moonriver, que anos mais tarde tentei arranhar na guitarra, sem grande sucesso – que se ajusta na perfeição à toada do filme.
Depois, é um filme de Nova York, um filme onde a cidade é mais do que cenário, palco para amantes ou espectadora de um encontro. Ela, a big apple, participa na história e evolui com o amor não correspondido de Paul Varjak pela futilidade sofisticada da adorável Holly Golightly. Esta personagem tão ambígua, tonta (em parte na aparência) e ternurenta, gera a nossa simpatia apesar disso. Tal deve-se, julgo, à mestria de Capote e à excelência de Hepburn. Nunca um remake deste filme foi feito e creio que será difícil Holly Golightly renascer por alguém que não Hepburn. E não era só a sua beleza. Era qualquer coisa mais que ela aportava à ingénua personagem que nos hipnotizava.
Em 1961, o cinema saía do classicismo e entrava na irreverência da década onde os costumes foram quebrados e o experimentalismo e a provocação se insinuaram na agenda. Boneca de Luxo posiciona-se assim como um resistente descomplexado do fim de uma época, e, ao mesmo tempo, uma obra vanguardista que entronca bem na liberdade que os anos sessenta expandiriam.
A Comédia Romântica é um género muito difícil. Porque é fácil cair no ridículo ou no banal, nas frases feitas ou no romantismo pateta. Boneca de Luxo é tão mais do isso, que só de o recordar enquanto escrevo estas linhas me deu vontade de o rever. Rever o canastrão George Peppard (o Hanibal d’Os Soldados da Fortuna!) a formar par romântico com uma das divas maiores do Cinema. Rever como Blake Edwards conseguiu traduzir na tela a sensibilidade que Capote colocou na sua história. E rever Nova York filmada como poucos cineastas o fizeram, rivalizando com Woody Allen ou Scorcese.
Estivemos dois dias em Nova York. Mais do que os museus ou os musicais, o que assinalámos para ver no mapa (em tão pouco tempo) foram os locais de passagem onde acreditávamos viver o espírito da cidade que trazíamos dos livros e dos filmes. A Ponte de Brooklyn, Greenwich Village, ou Time Square foram locais obrigatórios óbvios, mas a Tiffany’s também constava da lista. Não por qualquer ambição em comprar uma joia que me obrigue a dar o cu para resto da vida, mas por ser um lugar emblemático num dos filmes mais doces que vi. Encontrámos duas Tiffany’s, não sendo nenhuma delas a do filme. Teremos que voltar.