A indústria farmacêutica é uma das mais lucrativas do mundo, e um dos tentáculos mais cruéis do capitalismo. Mercantilizar um direito fundamental como é o acesso à saúde é uma opressão brutal sobre todos os que não têm condições económicas para se proteger, tratar ou curar. Este é um ponto basilar de toda e qualquer discussão sobre saúde e que não pode ficar arredado do pensamento. O capitalismo mata gente, ponto. Mata muita gente. Mantém doente e incapacitada e em sofrimento agonizante muita gente. Limita a liberdade, a mobilidade, a capacidade de trabalho (logo, a subsistência) e o bem-estar de ainda muito mais gente.
Posto isto, não deixa de ser espantoso que se criem resistências patetas, baseadas em ignorância, medo, mitos e desinformação, talvez laxismo, a soluções preventivas que são acessíveis. A corrente New Wave de anti-vaxxers que coloca em causa não só a própria vida como a saúde pública é um perigo global que já trouxe de volta doenças que tinham sido dadas como erradicadas (como o sarampo) e vai permitindo à selecção natural actuar de formas que já deviam estar em desuso.
Tomemos o exemplo da vacina da gripe. Em Portugal, esta vacina é disponibilizada gratuitamente para uma parte das pessoas consideradas grupos de risco e é uma protecção eficaz contra um vírus muito mutável, que causa uma doença extremamente comum, potencialmente debilitante e mesmo mortífera se existirem complicações. Mas proliferam vários mitos sobre a mesma e a maior parte das pessoas dispensa a vacina, mesmo podendo adquiri-la sem esforço ou gratuitamente. Já ouvi desculpas como “as vacinas são para os velhinhos” ou “se apanhar a vacina é certo que fico doente a seguir”. Não, as vacinas não são só para os velhinhos. São indispensáveis a todos quantos fazem parte de grupos de risco (pela fraca imunidade ou pela exposição acrescida, por exemplo), de todas as idades, mas são também úteis a todos os outros, já que não é raro os surtos de gripe tomarem características epidémicas. E não, a vacina da gripe não contém vírus activos, pelo que não vai provocar gripe a quem a toma. Não vai é a tempo de evitá-la caso o contágio se tenha dado antes (o período de incubação varia entre um e cinco dias).
É também comum, em Portugal, empresas de média ou grande dimensão facultarem aos seus trabalhadores a vacina contra a gripe (não porque sejam beneméritos, mas porque pretendem evitar o absentismo e quebra de produtividade dos trabalhadores doentes). Contudo, graças aos mitos e desinformação, grande parte dos trabalhadores recusa esta protecção. Destes, a maioria está, pouco tempo depois, a tossir e a espirrar nas salas e corredores (que ficam passíveis de confusão com um sanatório), para cima dos equipamentos comuns, a usar as mesmas maçanetas e torneiras que toda a gente. Ou seja, a potenciar o contágio. E isto também porque ninguém quer perder o salário de uns dias “só” por causa de uma gripe. Ao contrário do que alguns patrões e chefias pensam, os trabalhadores não vão trabalhar doentes por “amor à camisola” e extrema dedicação, mas porque precisam do salário.
A falta de civismo também é um dos factores de propagação da doença. Seja numa sala de espera de um hospital ou centro de saúde ou em qualquer transporte público, é quase um milagre não apanhar uma doença contagiosa. Pessoas de todas as idades a espirrarem alarvemente e a tossirem sem taparem a boca, além de uma tremenda falta de maneiras (não no sentido de etiqueta, mas no sentido de respeito pelo espaço individual) é um cenário comum que demonstra um desprezo generalizado pelas mais básicas regras de higiene, que se junta ainda à falta de hábito de lavar as mãos e à pouca vontade quando só há água fria nas torneiras e está um frio de rachar. As normas sociais que impelem aos apertos de mãos e beijinhos são o golpe final para concluir o cenário de surtos de gripe uma ou duas vezes por ano.
O investimento da Direcção Geral da Saúde em prevenção da gripe existe, mas sem particular notoriedade, pelo menos do ponto de vista do cidadão comum. No Sistema Nacional de Saúde, a falta generalizada de equipamentos suficientes e eficientes para cobrir as necessidades das populações (hospitais e centros de saúde com serviços de atendimento permanente, para começar) levam a salas de urgências a abarrotar e a tempos de espera intoleráveis, em que a exposição a agentes infecciosos aumenta consideravelmente. Um apontamento muito positivo é aqui devido à Linha Saúde 24 (808 24 24 24), que disponibiliza de forma gratuita aconselhamento cuidado e encaminhamento dos utentes.
Quem ganha com tudo isto? A indústria farmacêutica de que estamos reféns, que vende a solução preventiva e vende uma miríade de remédios para tratar cada um dos sintomas (um para a febre, um para a tosse, um para as dores de garganta…). Depois do enorme embuste que foram as vacinas contra a Gripe A (vírus H1N1) há nove anos, para responder a um alarmismo sobredimensionado, mesmo os mais ingénuos já perceberam que não estamos a falar só de uma relação económica simples entre procura e oferta. Estamos a falar de um negócio multimilionário assente num complexo sistema de interesses que joga com dinheiros públicos, privados e com a saúde das populações. Faz-nos pensar, por exemplo, se terá sido só coincidência que num inverno como este, em que o pico esperado do surto de gripe tardou mais do que o habitual, as vacinas contra a gripe tenham estado genericamente esgotadas até ao final de Dezembro…
A saúde das pessoas, que deveria ser prioritária ao longo de todo o processo (da informação à prevenção, do diagnóstico ao tratamento) é uma espécie de efeito secundário neste enredo em que cada um de nós é apenas mais um consumidor. Deixar a saúde nas mãos gananciosas do grande capital significa que são as leis do mercado que controlam tudo. As soluções que curam não são rentáveis para as farmacêuticas, pois estariam a anular rendimentos futuros. Assim, o interesse da indústria não é produzir curas; é manter os doentes dependentes de medicação a longo prazo com drogas “cronificadoras” das doenças. Por outro lado, as doenças que afectam sobretudo populações com pouco poder de compra vão sendo negligenciadas e o investimento em investigação e desenvolvimento de medicamentos foca-se nas maleitas do mundo ocidental e desenvolvido. Não é por mero e infeliz acaso nem por inépcia da ciência que doenças devastadoras como a SIDA, malária ou tuberculose não tenham ainda curas definitivas e vacinas completamente eficazes conhecidas, ou que as populações dos países em desenvolvimento só pareçam ser apelativas para a indústria do ponto de vista dos ensaios clínicos.
Entre a ignorância que rejeita a vacinação e empola surtos de doenças erradicadas ou ‘apenas’ de gripe, e a ignorância da alienação e passividade perante o controlo da civilização por parte do poder económico, há pontos comuns e é nestes que devemos, colectiva e individualmente, reflectir. A ignorância, como o vírus da gripe, é contagiosa, propaga-se rápida e facilmente e não se cura com antibióticos. Além disso, inicialmente aparenta ser uma perturbação sem grandes consequências, passageira, mas abre a porta a complicações muito maiores e gravosas. Mas ao contrário do vírus, infelizmente, não há vacina que nos proteja contra a “infecção”. Cabe a cada um de nós fazer a profilaxia individual (informação, raciocínio crítico e higiene intelectual) e estimular os outros a fazerem o mesmo.
Da mesma forma que as doenças são incuráveis só até se descobrir a cura, também os poderes só são invencíveis até serem derrotados.