Amor e moda: segredos escondidos a leilão

Ninguém poderia supor que a venda em leilão de uma colecção de vestidos de alta costura da Casa Lanvin da década de 1930, que teve lugar no passado mês de Novembro pela célebre leiloeira Christie, esconderia uma história de amor e escândalo em Hollywood.

O guarda-roupa em questão tinha pertencido a Catalina Bárcena, nascida em 1888, oriunda de uma família de pequenos proprietários em Cuba, que emigraram para Espanha na viragem do século. Com 20 anos, Bárcena foi enviada para Madrid para trabalhar numa companhia teatral de uma amiga da sua mãe, a actriz Maria Guerrero. Em breve, despertou as atenções do marido de Maria Guerrero, o actor Fernando Díaz de Mendonza, de quem ficou grávida de um filho que receberia o seu nome. A Catalina foi arranjado um casamento de conveniência com outro actor da companhia teatral, Ricardo Vargas. Após oito anos a trabalhar na companhia teatral da qual o marido fazia parte, Bárcena apaixonar-se-ia por outro homem, Gregório Martínez Sierra, dramaturgo, produtor e editor radical, por quem abandonaria a profissão. Gregório Martínez era casado com uma escritora femininista, Maria Lejárra, sete anos mais velha que ele e segundo constava, a co-autora não reconhecida – ou até mesmo autora – de muitas das peças teatrais de seu marido. Devido ao seu catolicismo fervoroso, recusou o divórcio ao marido e a relação deste com Bárcena tornou-se pública, sobretudo nos círculso intelectuais e aristocráticos de Madrid, que frequentavam.

Entre 1916 e 1926, trabalharam em conjunto na sua própria companhia teatral, sedeada no Teatro Eslava, onde apresentavam peças de um reportório vanguardista para a altura, de reputados dramaturgos estrangeiros como Pirandelllo, Ibsen, Shaw, mas também peças do próprio Martínzes Sierra e onde Bárcena figurava como actriz. Terá sido o casal quem descobrira Federico Garcia Lorca, tendo levado à cena o seu primeiro trabalho, A Maldição da Borboleta.

No âmbito da sua actividade como atriz, Bárcena viajou, em 1923, para Paris, tornando Jeanne Lanvin a sua principal criadora de peças de alta-costura para as suas produções teatrais. Lanvin, que até então produzira essencialmente vestidos destinados para debutantes e suas mães, com vestidos delicados, profusamente adornados com rendas e bordados, encetaria uma parceria que duraria toda a época de 20, permitindo à criadora o exagero em roupas excessivamente elaboradas, destinadas à cena teatral, que contrastavam com o gosto mais simples da cliente comum e à actriz uma imagem de marca inconfundível e tornando-se inclusive a principal embaixatriz da marca Lanvin.

O nascimento da filha de Bárcena e Martínez Sierra em 1922, envolto em escândalo, iria mudar os rumos destes, acabando por encetarem uma tournée durante três anos, na América do Sul, que se revelaria a porta de entrada para Hollywood. De facto, nesses anos a industria cinematográfica americana estava em mutação, decorrente do aparecimento do cinema sonoro. Muitas das antigas estrelas do cinema mudo tinham vozes que não agradavam aos produtores, pelo que a industria iniciou uma procura de actores que suprissem essa falha. Bárcena e Martínzes Sierra acabariam por assinar contrato com os estúdios Fox, tornando-se a primeira actriz de origem hispânica em Hollywood. Nos sete filmes que rodou, usou naturalmente todos os seus figurinos Lanvin, que com ela tinham viajado.

Figurino e vestido Lanvin, para Catalina Bárcena, na sua interpretação de Dama das Camélias. Christie’s Images Ltd.2012, Archivo Catalina Bárcena Madrid
Figurino e vestido Lanvin, para Catalina Bárcena, na sua interpretação de Dama das Camélias.
Christie’s Images Ltd.2012, Archivo Catalina Bárcena Madrid

Todavia, em meados da década de 30, a concorrência de outras actrizes de língua espanhola fez-se sentir, como Dolores del Rio, ou Lupe Velez, fazendo com que não se celebrassem mais contratos. O casal voltaria para Espanha, mas o estalar da Guerra Civil obrigou-os a um exílio em Buenos Aires, marcado por dificuldades financeiras. Longe das telas e dos palcos, Bárcena manteria, contudo, o seu guarda-roupa intacto. Em 1947, voltariam para Madrid, embora um mês depois da sua chegada, Mártinez Sierra morreria com cancro. Bárcena viveu em Madrid até ao fim da sua vida, em 1978, afastada do estrelato, embora tenha recebido o Prémio Nacional de Teatro Espanhol em 1971, como reconhecimento da sua carreira.

A colecção, mantida intacta pela sua filha Katia, seria emprestada pelos filhos desta ao Museu do Traje de Madrid. Todavia, visto ter-se mantido em depósito, sem nunca ter sido exposta, a família decidiu que a colecção deveria ser tornada pública, ou iria  a leilão, o que de facto aconteceu.

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