Abreviámo-nos

Sonhas-me, quis saber. Em todos os bocadinhos de vida, sentiu ele. Tenho lembrança de andares por lá, de um lado para o outro, nem sempre acordo sabendo ao certo o quê. Respondeu-me em voz.

Os olhos diziam que sabia, e eu sei ler os olhos, mas havia imprudência nesta conversa. Era meu dever acreditar na fala, era o que mais faltava desconsiderar as palavras. Juntei o queixo ao ombro esquerdo e balancei o corpo de um lado para o outro, encolhendo os ombros em simultâneo. Haverá gesto feminino mais irresistível do que este? A mistura de fragilidade, carência e desconfiança pelo que se diz? Haver, há. A força, a rebeldia, a mão na anca, o sangue quente. Mulher-varina. Mas nem todos são apreciadores da verdade e, em vezes, sabe bem esta ternurinha plasmada na ilusão de que não vivemos um sem o outro.

Confesso o que te dizem os olhos, sonho-te porque és o meu melhor bocado de vida, quis ter ouvido. Sonhas-me, repeti. Com o teu cheiro a lavado envolto no quente de uma noite de sono, o teu cheiro a cama. A pão quente, costumavas dizer. A pão quente, exatamente assim. Será isto traição, deixei escapar. Sentir-te-ias traída, constatou.

Eu percebi a observação, porém, já toda a infidelidade ocorrera do lado de dentro, momentos a fio, antes deste instante. A diferença é que agora ele poderia contá-la. Mas que motivo teríamos para escavacar a vida um do outro se, no fundo, nos sonhamos…

Amargaste-me, disse-me por fim. Porventura não foste tu quem desgostou o doce, sussurrei-lhe. És o amor maior da minha vida, diziam-me os olhos. A boca só sorriu. Eu estava tão certa como o vento que tudo arrebita – foi o palato que mudou e eu parti. Guarda-me a mágoa da partida e eu guardo-lhe a dor do palato perdido.

Continuei a ler-lhe os olhos.

Na casa da vida há um longo corredor. As assoalhadas são todas as partes que lhe estão por dentro, o demorado corredor está no meio. Há amores que espreitam o caminho, outros que cavalgam por ele fora. Há amores que andam um par de metros, outros, tantos metros mais. Há amores que chegam ao seu final, são os grandes amores, os belos. Nesse final, há uma porta. Dá acesso ao subterrâneo, ao intocável. Há amores que tocam a porta, a maçaneta e nos afagam os cabelos. São estes os tais, os grandes amores que carregamos. A porta é outra história, só abre uma vez. É esse o amor da vida da gente, o que se imiscui de tal forma na terra de dentro que se torna a nossa pele. A porta só abre uma vez, já o disse? Abriste-ma. Abreviámo-nos, éramos para ter sido a vida inteira.

Mas da escrita dos olhos não se faz prova, é o mal do mundo. Dois pares deles dizendo o mesmo e nada se disse que se possa provar aqui ou ali.

Como vai a Ana, perguntei-lhe. Conversa fiada, menos imprudente, agarra o suposto. Com sono, o pequeno não dá tréguas, disse. Tinha-me esquecido que a vida anda, sem abébias, é preciso agarrar nas rédeas. Mas é o mais lindo, não é assim? Que mais poderia eu dizer. É… penso no como estaria neste instante, agora mesmo, se tivesse namorado a vida com a força com que o olho… hoje sei que me meti nas mãos do acaso. A lengalenga do que é nosso sempre chega, completei-lhe a frase. Sim, essa mesma, serve para nos apaziguar, uma fábrica de fazer dormentes. É o melhor de ti, no entanto, não precisaste de mais do que a biologia, poderias ser um traste que também procriarias. Precisamente, anuiu.

E nisto, ficaríamos aqui, horas, no vazio belo da conversa, mergulhados em questões cujas respostas são um infinito de constatações e refutações. Mas é imprudente.

Manda um beijo à Ana.

Um abraço ao Rui, que tão bem dança abraçado a ti.

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